Título: A ameaça da Previdência
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/04/2005, Notas & Informações, p. A3

Enquanto se adensam as suspeitas de que o há pouco nomeado ministro da Previdência Romero Jucá pode ter dado garantias falsas em um contrato com o Banco da Amazônia de uma empresa de que era sócio e pode ter recebido propina em projetos de obras públicas em um município do Estado de Roraima, pelo qual se elegeu senador, pouco destaque vem merecendo a crise financeira do sistema previdenciário. Ela é apontada como a maior, e sempre crescente, ameaça ao precário resultado da política fiscal que se baseia no superávit primário e que, até agora, praticamente se resume (o resultado) na estabilidade do passivo das contas públicas. Em artigo publicado domingo neste jornal sobre os riscos externos a que as finanças públicas e a economia nacional continuam expostos, na hipótese de se deteriorar a conjuntura internacional que beneficiou o Brasil nos dois últimos anos, o ex-presidente Fernando Henrique apontou o explosivo déficit da Previdência, "mal antigo, de difícil contenção e de rápida expansão", como a mais inquietante causa de vulnerabilidade das contas estatais - e, por extensão, do País. "A reforma da Previdência parou", destaca ele, e "a incompetência no manejo administrativo (em geral) é outro foco de preocupação."

Haja preocupação. Dos três titulares da Pasta da Previdência até aqui, o primeiro, o ex-sindicalista Ricardo Berzoini, tanto dominava o assunto que achou a coisa mais natural do mundo obrigar os aposentados de avançada idade a padecer em filas intermináveis para se recadastrar, como se nos dias de hoje não existissem meios técnicos menos punitivos para tal. O que ele fez para combater as mazelas do setor ninguém sabe, ninguém viu. Seguiu-se o senador Amir Lando, que até onde se sabe é um político de ficha limpa, porém sem a mais remota noção dos problemas da área que tinha sido chamado a gerir.

O atual, peemedebista como o anterior - e por isso nomeado para o seu lugar, no que sobrou da reforma ministerial para o governo de coalizão dos planos reeleitorais do presidente Lula - parece entender mesmo é de aparecer na mídia. As suas obviedades sobre as questões que exigem aprofundado conhecimento de causa sugerem que o senador está tomando contato com elas pela primeira vez. Pode-se não saber se ele é tão inocente como diz dos malfeitos a que seu nome está ligado. Mas não há dúvida que Jucá é mais um ministro de Lula candidato a tentar dominar o ofício enquanto o exerce.

É também mais um ministro a anunciar políticas de combate ao endêmico problema das fraudes na Previdência, criticadas por não apanharem os "peixes graúdos". Um indicador irrefutável desse descalabro endêmico, incentivado pelo caos administrativo do INSS, está no relatório oficial que aponta a existência, a partir dos 70 anos, de mais beneficiários do que de brasileiros vivos. Reportagem na edição de domingo do Estado cita a estimativa do presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, João Batista Inocentini, segundo a qual passa de 1 milhão o total de benefícios que continuam a ser pagos mensalmente a pessoas falecidas.

Elas se somam a outros 2 milhões de irregularidades. A sangria chega R$ 15,6 bilhões, metade do déficit do INSS em 2004. Para este ano estão previstos R$ 40 bilhões. De um lado, muitas famílias deixam de informar a morte dos beneficiários, seja pelo dinheiro, seja pela trabalheira que dá ser honesto. De outro lado, porque "o sistema" - a imensa base de dados do Ministério - ou não tem como dar baixa nos benefícios, em razão de homonimias não esclarecidas, ou porque, segundo a própria Previdência, "inexistem dados cadastrais suficientes que permitam a associação do óbito (informado pelos cartórios) ao benefício". Em bom português, o INSS não liga o nome à pessoa.

A desídia tudo perpassa. É claro que, aliada à desídia, ou favorecida por ela, medra a corrupção. O repórter Gabriel Manzano Filho descobriu o caso de uma costureira em São Paulo que todo mês recebe em conta a sua aposentadoria por tempo de serviço e a pensão herdada do pai. O detalhe é que ela faleceu há três anos - e a família simplesmente não consegue interromper os pagamentos. A primeira funcionária do INSS procurada por uma sobrinha da falecida disse-lhe o que ouviria de mil outras maneiras nos guichês do instituto: "Eu não tenho a menor idéia de como resolver o problema." E o recadastramento dos beneficiários do sistema, iniciado em dezembro para acabar em fevereiro, verificou até agora apenas 12 milhões dos 23,2 milhões de cadastros.