Título: Médicos de SP votam contra mudança na fila do fígado
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/04/2005, Vida &, p. A14

Na contramão da decisão tomada recentemente pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT) de alterar o critério de organização da fila do fígado, a câmara técnica que avalia o assunto para a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo decidiu que a fila deve continuar a obedecer ao critério atual. Em uma reunião realizada na quinta-feira, o grupo resolveu, por 7 votos a 1, enviar um manifesto ao SNT contra a alteração proposta. A intenção do sistema nacional é mudar a organização da fila da ordem cronológica para a ordem de gravidade. Ou seja, quem passaria a ter prioridade para receber o órgão seria o paciente em estado mais grave e não o que entrou primeiro na fila. Na opinião da Câmara Técnica do Fígado de São Paulo, onde são realizados 50% dos transplantes de fígado do País, a adoção integral do critério de gravidade poderá levar a um desperdício de órgãos disponíveis, por causa do elevado índice de mortalidade pós-operatória entre os pacientes mais graves. À frente da oposição está o médico Sergio Mies, coordenador do Departamento de Fígado da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e chefe da Unidade de Fígado do Hospital Albert Einstein. Ele aponta que os transplantes realizados hoje no Estado atendem a apenas 8% da fila, que tem cerca de 3.600 pacientes.

"Portanto, se empregarmos um critério exclusivo de gravidade, vamos transplantar apenas os 8% mais graves. E os clinicamente melhores só passariam pelo transplante quando já estivessem numa situação grave", afirma Mies. "É óbvio que essa política vai aumentar significativamente a já elevada mortalidade depois do transplante."

Dados da Secretaria da Saúde indicam que 35% dos pacientes transplantados morrem dentro de um ano após a cirurgia (sobrevivência de 65%). A fila nacional - que inclui a de São Paulo - tem 6 mil pessoas e a espera por um fígado pode chegar a quatro anos. Pelo critério atual, quem recebe o órgão é o primeiro da fila, independentemente da gravidade de seu quadro clínico.

Levantamento do Ministério da Saúde, porém, indica que mais de 60% das pessoas na fila do fígado não precisam efetivamente de um transplante e poderiam ser excluídas da lista. Como a espera pelo órgão pode levar anos, muitos pacientes hepáticos acabam sendo incluídos na fila prematuramente, tomando o lugar de pessoas que realmente necessitam da operação.

A proposta do SNT, adiantada com exclusividade pelo Estado no dia 22, é mudar a organização da fila de modo que o órgão vá sempre para o paciente em estado mais grave. "Queremos atender primeiro aqueles que mais precisam do transplante", disse o coordenador do SNT, Roberto Schlindwein. A expectativa é de que a mudança, aprovada pela Câmara Técnica do Fígado do Ministério da Saúde por 5 a 2, seja posta em prática nos próximos dois meses.

A proposta da Câmara Técnica do Fígado de São Paulo é que o critério de gravidade seja usado apenas para incluir pacientes na fila. A partir daí, continuaria a valer a ordem cronológica. "Essa modalidade independe de excluir pacientes muito graves. Alguns destes seriam operados quando chegasse a sua vez. Se por acaso o paciente morrer antes, é porque seu estado já é especialmente grave, tornando fútil o transplante", explica Mies.

SELEÇÃO

O critério de seleção em ambas as propostas seria uma combinação de três exames de sangue, conhecida como Meld, que prevê as chances de mortalidade do paciente nos próximos três meses. Numa escala de gravidade de 6 a 40, apenas pacientes com Meld acima de 15 seriam aceitos na fila. O teste, desenvolvido nos EUA, é barato, rápido e padronizado, segundo os médicos.

A manifestação da câmara técnica paulista não tem poder para reverter a decisão do SNT. O grupo é formado por oito especialistas da USP, Unicamp, Unifesp, Famerp, Santa Casa e ABTO. O único voto contrário foi o do clínico patologista da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Hoel Sette Jr., que representava a disciplina de Transplante e Cirurgia do Fígado.

Ele aponta que foi a mesma câmara paulista que instituiu o critério de cronologia - primeiro no Estado e depois no País - a partir de 1997. "É a mesma coisa que dizer a todos os prontos-socorros do Estado que façam uma lista cronológica para atender os pacientes de emergência", critica Sette. "O transplante é o único meio de salvar a vida de pacientes com doenças do fígado aguda ou crônica em fase terminal. Se você cria uma regra cronológica, vai exterminar todos os doentes graves e os que sobram não têm indicação para transplante. É uma afronta à ética médica, à justiça distributiva e aos direitos humanos."