Título: A falta que o excesso não faz
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/04/2005, Nacional, p. A6

Era para ser apenas uma comitiva e um funeral, mas, como tudo o mais, virou uma confusão Ao molde da ponderação psicanalítica segundo a qual na vida nem tudo é simbolismo, no terreno do cerimonial diplomático cumpre registrar que às vezes - a maioria delas - uma comitiva presidencial é só uma comitiva presidencial, carece de significados e dispensa interpretações.

Por isso, nada, não fosse a vocação pelo modo propagandístico de governar, autorizaria a conclusão de que o governo brasileiro teria escalado seu elenco de convidados ao funeral do papa João Paulo II referido em simbolismos afeitos à política interna, notadamente a eleitoral.

Um dos possíveis: posar com a magnanimidade de presidente acima de conflitos partidários, integrando à delegação dois adversários - Severino Cavalcanti e Fernando Henrique Cardoso - contra os quais nutre desconforto explícito.

Seria um gesto de elegância, não rendesse benefício político para o autor, a quem não faltariam outras oportunidades para produzir semelhante efeito.

Cerimônias fúnebres requerem sobriedade e discrição. Quanto mais imperceptível e carente de qualquer registro for a passagem dos participantes das solenidades de adeus, mais respeitosa será a homenagem.

Seja qual tenha sido a intenção, o resultado em princípio soou inadequado e, como sempre, os transtornos tiveram origem nos excessos: de convidados para viajar no avião presidencial, de presunção ao chamar os quatro cardeais brasileiros votantes para ir junto, de senso marqueteiro ao integrar à lista líderes de religiões e seitas para denotar ecumenismo.

Nem existe, na configuração da cerimônia no Vaticano, lugar para tanta gente, o que evidencia indiferença ao que vai se passar lá, por ocasião do fato em si.

A preocupação central é a de montar um cenário favorável ao chefe da delegação, no caso o presidente Luiz Inácio da Silva. Diante de tão ilustres e diferentes presenças, ele termina sendo o real homenageado, tal a sorte de análises positivas a respeito de seu gesto, produzidas internamente.

Ainda que a cena pareça um tanto folclórica e algo rebuscada demais.

Os excessos, desta vez, não ficaram todos por conta dos especialistas oficiais em fazer brotar confusão dos acontecimentos mais simples e previsíveis. Agora o governo Lula teve um parceiro à altura na figura do arcebispo do Rio de Janeiro, d. Eusébio Scheid.

Ao chamar o presidente da República de "caótico" e "boboca", o arcebispo mostrou que a ausência de compostura que assola o País já chegou ao cardinalato. Portanto, livres da falta de educação não estamos mais em lugar algum.

Se até em torno da morte e da sucessão do papa trocam-se desaforos, se faz marquetagem e não há pejo na busca do proveito político e no culto à personalidade, guarde-nos o Santíssimo quando o ambiente já não pedir luto e circunspecção.