Título: 'É difícil reconhecer erro num governo que acerta tanto' Juros, rodovias e Severino, os três erros de Lula
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Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2005, Nacional, p. A10

A seguir, os principais pontos da primeira entrevista coletiva concedida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva

MEA-CULPA: Para explicar os erros do governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva começou com pouca modéstia: "É difícil reconhecer um erro num governo que acerta tanto". Mas não se fez de rogado e logo apontou dois erros. "Nós não conseguimos fazer as obras nas rodovias brasileiras que eu gostaria de fazer. Segundo, que eu acho que pode ter sido um erro nosso a gente ainda não ter feito com que os juros não sejam o único padrão de controle da inflação. Possivelmente eu possa fazer isso, que é uma busca que eu ainda não consegui. No máximo, eu acho que pode ter outros erros que, possivelmente... Você não sabe aquela história que o pai nunca vê o defeito do filho? Para o pai, o filho é o melhor da classe, é o melhor da rua, é o melhor jogador, é o melhor em um monte de coisas. Só quando ele conversa com alguém de fora é que ele fica sabendo dos defeitos do filho." Um terceiro erro admitido pelo presidente foi a derrota do PT na eleição para a presidência da Câmara. Mas com uma ressalva: "Severino é meu aliado, o partido dele faz parte da base de sustentação do governo." E explicou a vitória surpreendente: "Ele foi eleito presidente da Câmara concorrendo e cumprindo as regras existentes na Câmara. Sorte dele que ganhou e azar de quem perdeu." SALÁRIO MÍNIMO Nós precisamos trabalhar de forma intensa no Brasil para que se tenha uma melhoria muito grande no processo educacional, na formação profissional, para que os trabalhadores brasileiros não ganhem salário mínimo, ou seja, ganhem sempre um pouco mais, como os trabalhadores das indústrias mais sofisticadas. Eu acho que vamos caminhando a passos largos para conquistar um salário mínimo que possa dar, no mínimo, a dignidade que todos os trabalhadores que o ganham merecem ter.

ESTABILIDADE ECONÔMICA

Eu acho que nós estamos caminhando para garantir a estabilização da economia e que possamos ter certeza de que a inflação não voltará mais, porque a inflação é o que pode causar enorme prejuízo aos assalariados no Brasil.Eu já vivi como assalariado, recebendo a notícia de inflação de 40%, de 50%, de 80%. Eu me lembro de uma vez em que comecei a reivindicar que o salário dos trabalhadores fosse pago semanalmente. Todos nós sabemos que precisamos trabalhar, caminhar muito fortemente para que possamos reduzir a taxa de juros.

COMPANHEIRO PALOCCI

Eu tenho pelo companheiro Palocci o mais profundo respeito, uma ligação política, ideológica, uma relação de quase 30 anos. Portanto eu poderia dizer que eu e o Palocci somos unha e carne. Eu tenho total confiança nas coisas que o Palocci faz e, se ele faz, faz na perspectiva de fazer o melhor para este país. Quando o ministro Palocci anuncia a mim que vai mudar a sua equipe econômica, eu digo para ele: eu quero saber se você confia nas pessoas que está indicando. Se ele falar para mim "eu confio, são pessoas que vão fazer aquilo que eu achar que deve ser feito", então, meus queridos, monte a sua equipe porque é assim que o Brasil pode ir para a frente. Se o século 19 foi da Europa, o 20, dos Estados Unidos e o finzinho dele da China, nós queremos que o século 21 seja do Brasil e dos países mais pobres.

O GRANDE LADRÃO

O dado concreto é que temos uma meta de inflação, que era de 4,5% e passou para 5,1%. Essa meta tem uma banda para mais e para menos. Por enquanto a nossa meta é tentar chegar aos 5,1%, que nós mesmos determinamos. Se não conseguirmos é porque não conseguimos, mas perseguimos. E eu acho que se não chegarmos lá, chegaremos bem próximo. O que eu quero é não permitir que a inflação volte a ser o grande ladrão do salário do povo trabalhador.

SALTOS DA INFLAÇÃO

Eu tenho a convicção de que vai se repetir o resultado importante do ano passado, a gente garantir que a inflação não volte. Porque na hora em que a inflação começar a crescer, se ela chegar a dois dígitos, a experiência do Brasil mostra: ninguém segura, de dez para quinze vai num passo, de quinze para vinte, vai em outro.

CONTRA A TAXA DE JUROS

É importante lembrar que uma das razões pelas quais eu convidei o José Alencar para ser meu vice foi pelo discurso que ele fazia contra a política de juros, sendo empresário. Porque se fosse eu, como metalúrgico, todo mundo falaria: "Nossa! Mas esse metalúrgico é muito radical, muito sectário!" Um empresário do maior grupo têxtil de Minas falando de juros, as pessoas não ficavam tão incomodadas como (ficariam) se eu falasse. Eu acho que todos nós, o ministro Palocci, Meirelles, os funcionários todos do Brasil e o povo desejam que encontremos uma taxa de juros mais baixa e nós precisamos trabalhar para criar condições para que essa taxa de juros baixe.

O CHEQUE ESPECIAL

Quando ganhei meu primeiro cheque especial, em 1976, achei que o banco gostava de mim, me deram um cheque especial e achei que era um cliente especial. Um belo dia a minha mulher foi comprar um sofá e extrapolou o limite do cheque especial. Eu tinha meu fundo de garantia nesse banco e, de repente, percebi que, do dinheiro do fundo de garantia eu recebia um pouquinho assim de juros, mas, do que eu extrapolei no limite da minha conta, estava pagando 10% de juros. Eu, enquanto cidadão, se tiver um cartão de crédito, não posso deixar estourar, porque se eu deixar passar a data de vencimento, eu vou pagar um juro que eu não posso pagar. Nós só vamos mudar isso na medida em que o povo começar a agir com mais cobrança, não apenas (esperando) que o governo faça. A sociedade, por si só, pode ir reeducando o sistema financeiro brasileiro para entender que nós somos um país capitalista, que precisamos ter dinheiro em circulação.

AUTONOMIA DO BC

O Banco Central tem muita autonomia no meu governo. Eu sei que no Senado Federal começou uma discussão. Vamos deixar o Congresso discutir. Se em algum momento entenderem que a autonomia do Banco Central pode dar o resultado que o Palocci disse que dá, que a autonomia vai fazer baixar os juros, ora, eu seria louco se não fizesse. Agora, na teoria, a prática é outra. Ou seja, ninguém pode garantir que a autonomia, por si só, resolva o problema. Eu sei que na maioria dos países do mundo o Banco Central tem autonomia. Não faço disso uma profissão de fé e tampouco uma questão ideológica. Acho que a questão do Banco Central não pode ser tratada do ponto de vista do debate político e ideológico que se dá na sociedade, ela tem que ser tratada do ponto de vista técnico. Não faço disso uma peça de campanha. Se chegar, no momento certo, a partir dos debates que estão se iniciando, de que isso é possível e que isso melhora, não vejo por que não fazer.

ACORDO COM FMI

Não temos mais acordo com o FMI. Não se precisou dar murro na mesa, não se precisou gritar, não se precisou levantar faixa, não precisei convocar nenhuma passeata. Nos dois anos do meu governo, nós criamos as condições para que o Brasil tivesse uma segurança na sua política econômica capaz de permitir que nós disséssemos ao FMI: nós não precisamos renovar o acordo porque não vamos usar (seu) dinheiro. De qualquer forma, estamos com a economia mais sólida, com mais confiabilidade interna e externa, nossas exportações cresceram, nossas reservas são boas e, portanto, eu penso que a dependência do Brasil dos acordos com o FMI deve fazer parte da nossa História. Nós iremos trabalhar para que nunca mais o Brasil precise de acordo com o FMI em função da vulnerabilidade que o País possa ter.

AUMENTO PARA SERVIDOR

Quando eu sou sindicalista, posso reivindicar, quando eu sou Presidente da República, só posso dar na medida em que eu olho o caixa e percebo que tenho. Se não tiver, vou dizer para os funcionários que não podemos dar. Se tiver, vou dizer que podemos dar e qual a melhor forma que a gente vai fazer para que o pouco que tenha possa ser distribuído.

AUMENTO DOS MILITARES

Um ministro do regime militar um dia disse que todo trabalhador que se contentar com aquilo que ganha, talvez não mereça o que ganha. Eu não tenho responsabilidade apenas com os militares, eu tenho com os militares, tenho com o servidor público brasileiro como um todo e tenho que criar as condições para o conjunto dos trabalhadores. Eu acho que os militares prestam um trabalho enorme à sociedade brasileira. O melhor exemplo é a prestação de serviço médico na Amazônia, é o nosso Correio Aéreo Nacional, é o Soldado Cidadão. Certamente, nós vamos tratar com carinho para encontrar um jeito de dar um reajuste para os militares, mas dentro das possibilidades do nosso orçamento.

MEIRELLES

Se o Supremo Tribunal Federal abrir investigação, é uma investigação. Eu só posso tomar uma atitude quando houver uma conclusão. O que quero para mim, eu faço para os outros. O fato de o Supremo começar a investigar, pode chegar no final e concluir que todas as coisas que foram levantadas contra o presidente do Banco Central não tem procedência. Se eu tiver tirado (Meirelles) antes, eu terei criado um problema político desagradável, porque julguei antecipadamente uma pessoa.

ROMERO JUCÁ

Eu primo por entender que todo ser humano é inocente até prova em contrário. Você não pode crucificar ou decretar pena de morte para ninguém por causa de denúncia. A denúncia, tem que apurar. Eu sou obrigado a esperar que haja a investigação e que haja uma decisão, (mostrando) que não tem erro, não tem nenhum problema na vida dele. Na hora em que tiver esse veredicto, eu tomarei a posição que tiver que tomar.

TRABALHO EM EQUIPE

Eu não sei qual o contexto que o Furlan disse isso (o governo não trabalha em equipe), porque Furlan é um dos companheiros que trabalha em equipe. Se está havendo um desentendimento, como de vez em quando existe na seleção brasileira, de vez em quando os dois Ronaldinhos não se entendem, um não passa a bola para o outro, isso não quer dizer que os dois não estejam jogando para o mesmo lado. Como eu acho que o Furlan é um extraordinário ministro, vou perguntar para ele qual é a falta de sintonia que está havendo, para a gente corrigir se houver um problema dessa ordem.

PAPEL DOS PARTIDOS

Tem um problema na relação política dentro do Congresso? Se tiver, é um problema que os partidos vão ter de resolver. Eu não quero, em nenhum momento, confundir o papel que cada partido tem, que tem seu líder dentro do Congresso, com uma ação do governo. O governo vai continuar fazendo aquilo que precisa ser feito para a boa governança do nosso País. Nós achamos que o Congresso Nacional já é, e pode continuar sendo, um grande parceiro para que tenhamos solidez na nossa economia.

DERROTAS NO CONGRESSO

Eu sou grato ao Congresso Nacional por tudo que nós conseguimos fazer nesses dois anos de governo. O Congresso aprovou coisas extremamente importantes, coisas que estavam aí há anos, rolando.

CABEÇA NO TRAVESSEIRO

Não só durmo bem, como (durmo) com a consciência tranqüila, de que estamos fazendo as coisas que podem e que devem ser feitas no Brasil. Nos oito anos do governo anterior, a média de emprego gerada por mês era de apenas oito mil empregos. Em 2003, você podia comprar 1,2 cesta básica com o salário mínimo. Você vai poder comprar 2 agora, a partir de 1.º de maio, com o reajuste do novo mínimo para R$ 300. Então, eu durmo com a minha cabeça tranqüila, durmo o sono dos justos todo santo dia, sempre com a preocupação de que eu preciso fazer mais, mais e cada dia mais, porque o desejo de fazer é insaciável da minha parte, muitas vezes limitado por circunstâncias que não dependem da minha vontade.

PAPEL DA IMPRENSA

Eu acho que não conheço um político que não se queixe da imprensa. Você é capaz de chegar num político da oposição, ele está se queixando da imprensa. Você chega num da situação, ele se queixa da imprensa. Eu nunca vi alguém dizer: "Não, essa aí está fazendo o meu joguinho". Eu já vi o presidente Itamar se queixar, já vi o presidente Sarney se queixar, já vi o Fernando Henrique Cardoso se queixar, já me queixei. Você vai para a oposição, é a mesma coisa. "Não, porque a imprensa só fala do governo, a imprensa não sei das quantas." Eu, no fundo, acho que a imprensa é um bom remédio para a gente consolidar a democracia em qualquer país do mundo, para fiscalizar a administração pública. E por mais que você não goste, sem ela nós não teríamos democracia. E nos momentos históricos em que não tivemos ela, todos nós sabemos o preço que pagamos.

SEGURANÇA NO RIO

Eu acho que 99% dos moradores da Rocinha são iguais aos moradores de qualquer outro lugar do Brasil. Não tenho dúvida de que, na Favela da Rocinha, a maioria das pessoas que moram lá são pessoas trabalhadoras, pessoas de bem. Eu acho que não há por que um presidente da República não ir à Favela da Rocinha, não ir à Favela Santa Marta, não ir ao Chapéu Mangueira. Eu estou convencido de que a segurança pública hoje não é problema de um prefeito, de um governador. É preciso que haja uma junção de todos os entes federativos para que a gente possa, conjuntamente, começar a sonhar a diminuir com a criminalidade. O narcotráfico, o crime organizado, tem seu braço político, tem seu braço no Judiciário, o braço internacional, tem seu braço no empresariado, não é mais aquele ladrão que nós estávamos acostumados a ver pegar.

CONSELHO DE SEGURANÇA

O Brasil defende a democratização da ONU, defende, sobretudo, a democratização do Conselho de Segurança, defende a participação de representações por continente. O Brasil reivindica para si essa vaga, por ser o maior país da América Latina, por ser um país de maior número de habitantes, de maior extensão territorial. Primeiro precisamos garantir que haja reforma; segundo, tendo a reforma, precisamos garantir a nossa participação. Isso vai ser bom para a ONU, porque quanto mais democrática ela for, mais vai poder realizar tarefas que possam garantir maior harmonia no mundo. Eu acho que, se a reforma sair, o Brasil entrará. Estamos trabalhando para que, se não for este ano, seja no ano que vem.

VENEZUELA

Não vejo nenhuma possibilidade de haver um conflito maior entre Estados Unidos e Venezuela. Sempre que possível, tenho conversado com o Chávez, tenho feito muitas reuniões. Ainda esta semana, eu recebi a secretária de Estado dos Estados Unidos aqui, e eu penso que nós estamos andando a passos largos para que haja uma grande harmonia entre Estados Unidos e Venezuela, até porque nós, do Brasil, temos todo o interesse em que no nosso continente haja a maior tranqüilidade. Os Estados Unidos importam 15% do petróleo da Venezuela, são o maior importador de petróleo da Venezuela. Portanto a Venezuela precisa dos Estados Unidos, os EUA precisam da Venezuela e não há nenhuma razão para os dois estarem brigando. Eu, depois da reunião com a secretária Condoleezza, fiquei convencido de que as coisas vão andar muito melhor daqui para a frente. Nós precisamos de paz para que a gente possa pensar no desenvolvimento, no crescimento econômico e na geração de riqueza do nosso país.