Título: As águas de abril
Autor: Pedro S. Malan
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Para o filósofo, as águas não são as mesmas e as pessoas também mudam com o passar do tempo.

Para o poeta, nossas próprias vidas são rios, que vão dar no vasto oceano que é a morte.

Metáforas sobre rio/vida, mar/morte e tempo/água fluindo no meio da noite são recorrentes na literatura universal.

O rio ¿ caudaloso ¿ da vida do papa João Paulo II esvaiu-se no mar aberto de sua morte e o fato emocionou milhões pelo mundo afora.

Afinal, aquele rio, como diria Guimarães Rosa, tinha sua ¿terceira margem¿ ¿ que nunca deixará de existir: a necessidade que o animal humano tem de acreditar em algo que pareça conferir algum sentido à sua precária existência individual e à sua vida em sociedade.

Eduardo Giannetti, em seu magnífico Auto-Engano, escreve sobre a ¿hipnose da boa causa¿ e, em particular, sobre a ¿força do acreditar como critério da verdade¿, mostrando sua importância fundamental para o mundo da política ¿ e da propaganda política, talvez a segunda mais antiga das profissões.

E que assume extraordinário relevo em midiáticas sociedades de massa neste início do século 21.

Como no Brasil de 2005.

Estamos em abril e, no governo e em seu partido, corações, mentes e nervos parecem estar concentrados em preparativos de toda ordem para as eleições de outubro de 2006.

Antes das quais muitas águas ainda vão rolar.

É parte integrante deste jogo de propaganda política a tentativa de associar o que não se quer a outros, responsabilizando-os (por ações ou omissões) pela existência dos males do mundo real.

E procurando vender-se ou autoproclamar-se como os verdadeiros detentores do monopólio das ¿preocupações com o social¿, com ¿a ética na política¿, com um ¿superior modo de governar¿, com a ¿seriedade no trato da coisa pública¿, com coisas que ¿nunca-jamais-foram-pensadas-ditas-ou-feitas-na-História-deste-país¿, e assim por diante.

Como se fosse possível a um grupamento político apropriar-se do ¿bem¿ por delegação autoconferida e com este ter contrato de exclusividade, atribuindo aos demais grupamentos políticos a persistência dos aspectos indesejáveis do mundo real.

A propósito, A Mistificação das Massas pela Propaganda Política é um interessante livro de Serge Tchakhotine, traduzido para o português por Miguel Arraes e editado pela Civilização Brasileira em 1967.

A obra é dedicada a Pavlov e a H.

G.

Wells, genial pensador do futuro.

Para Wells, citado em epígrafe, este futuro ¿deveria ser, em primeiro lugar, necessariamente, a obra de uma ordem de homens e mulheres, animados de espírito combativo, religiosamente devotados, que se esforçarão para estabelecer, e impor, uma nova forma de vida à raça humana¿.

Esta citação é de 1933, a primeira edição do livro é de 1939 e a segunda, base de tradução de Arraes, é de 1952.

Ora, direis, para que ouvir e ler velharias, há muito ultrapassadas? Afinal, estamos em abril de 2005.

O fato é que este espaço não seria suficiente para listar as experiências ou tentativas (nacionais, regionais ou mesmo de pretensões globais) que se propuseram a estabelecer e/ou impor novas ordens políticas, sociais e econômicas às suas populações ou mesmo à ¿raça humana¿, inclusive na vigência daquilo que foi denominado o curto (Hobsbawn) e difícil (João Paulo II) século 20.

Não há nenhum perigo de autoritárias ¿imposições de uma nova ordem¿ em democracias consolidadas, como é hoje o caso do Brasil.

Os riscos e incertezas que pairam sobre nós são de outra natureza.

Têm mais que ver com o grau de identificação, por parte da opinião pública, da natureza dos reais desafios a enfrentar para que possamos avançar mais na construção de uma sociedade que combine liberdades individuais, justiça social e eficiência tanto no setor privado quanto no setor público.

Não é fácil fazer este debate avançar em termos de maior qualidade e melhor entendimento.

Mas o Brasil tem feito progressos nesta área, porque conta com homens e mulheres dispostos não a estabelecer ou impor ¿novas ordens¿, mas a tentar persuadir, convencer e argumentar com idéias que respeitem os fatos, as pessoas, a lógica, o estágio de conhecimento que já alcançamos e as lições da experiência nossa e do resto do mundo.

Neste segundo fim de semana de abril, por exemplo, segundo registros de imprensa, o PT fará realizar encontro de seu chamado ¿campo majoritário¿ ¿ cuja chapa venceu suas últimas eleições internas, em setembro de 2000, com 51,6% dos votos ¿ para avançar no processo de ¿aggiornamento¿ do partido, a ser sacramentado, espera-se, nas eleições internas se setembro deste ano.

Ficou claro, no intenso processo de aprendizado dos últimos dois anos e meio, que uma coisa é chegar ao poder; outra, e muito distinta, é governar no dia-a-dia, que exige muito mais o gradualismo reformista que a promessa e a geração de expectativas de dramáticas rupturas.

Creio que o debate público neste ano e meio que falta para as eleições de 2006 poderia ser tão mais produtivo quanto mais conseguíssemos avançar em três aspectos.

Primeiro, focalizar as discussões não sobre vagos, generosos e puramente retóricos discursos sobre desejáveis objetivos a alcançar, mas sobre os meios específicos mais efetivos para alcançá-los.

E, particularmente, sobre as questões de gestão administrativa envolvidas, comparando diferentes experiências concretas.

Afinal, já temos quase dois anos e meio de experiências a serem avaliadas.

Serão três e meio na reta final.

Segundo, trazer para o debate a questão das distâncias entre o discurso e a prática, entre as promessas de campanha e as efetivas realizações do governo, entre as decisões que tiveram de ser tomadas no calor da hora, com as incertezas e dúvidas do momento, e os fáceis exercícios de sabedoria ex-post, aos quais muitos se dedicam, esquecendo que houve um momento em que aquilo que hoje é passado e, portanto, conhecido se encontrava em incerto e desconhecido futuro.

Por último, a qualidade e a ética do debate só teriam a ganhar se conseguíssemos diminuir ao máximo as lamentáveis tentativas de reduzir a escombros reputações alheias, para procurar erigir sobre esses mesmos escombros as suas próprias reputações de ¿seriedade¿.

Como diria Joaquim Ferreira dos Santos, estão faltando ¿humildificadores¿ em meio a estas turbulentas águas de abril de 2005.

Pedro S.

Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.

E-mail: malan@estadao.com.br

Miguel Reale, jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, foi reitor da USP. E-mail: reale@miguelreale.com.br. Home pages: www.

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