Título: O partido expiatório
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/04/2005, Nacional, p. A6

Lula tem escalado o PT para o papel de culpado por todos os males do governo Pode reparar: não importa a natureza da crise, o presidente Luiz Inácio da Silva de uns tempos para cá passou a atribuir sistematicamente ao PT a culpa por todos os seus infortúnios e não faz cerimônia - ao contrário - quanto à publicidade dada a essa avaliação. Foi assim por ocasião dos revezes eleitorais de outubro de 2004, da derrota na eleição da presidência da Câmara dos Deputados, do fracasso da medida provisória da redução do imposto das pessoas físicas combinada ao aumento de tributos para pessoas jurídicas, dos obstáculos a mudanças no ministério; está sendo assim na análise do cenário antecipado da disputa pela reeleição.

É verdade que o presidente planta em terreno fértil quando joga na conta do PT a razão e a origem daqueles e de mais alguns outros transtornos. Ninguém em sã consciência nega competência e habilidade aos petistas na produção do espetáculo da crise permanente.

Mas é um exagero creditar ao partido todos os equívocos passados e presentes, bem como é injusto imputar só ao PT as dificuldades que começam a ser previstas para a eleição de 2006. Dá a impressão de que o Palácio do Planalto procura um bode expiatório. Ou busca prudentemente separar o presidente do partido, valendo-se de alguns dados reais que, no entanto, contam só meia-verdade.

Da mesma forma o panorama não estaria completo se o PT atribuísse exclusivamente ao presidente da República a responsabilidade por não atuar como moderador para dirimir conflitos internos, já que quando se trata de impor posições o governo não tem pejo de fazer valer sua força.

O presidente se queixa das intrigas e auto-referências petistas quando se trata de brigar por espaços de poder no partido, no governo, no Parlamento e na formação de chapas para concorrer a eleições regionais. Reclama, mas também não articula composições nem arbitra soluções políticas.

Pode-se dizer que o barco petista corre solto, obedecendo à dinâmica da época de oposição, quando a luta pela conquista da Presidência acabava unindo, por gravidade, todas as tendências em torno da figura de Lula. Ele reinava enquanto José Dirceu governava.

A simples transposição do mecanismo de funcionamento do partido para o governo obviamente não deu certo. A situação é infinitamente mais complexa: do outro lado há um país e, no meio, uma população que mede, pesa e julga todos os atos, gestos e palavras. Acrescente-se ainda a presença de outros atores como a oposição, os partidos aliados, suas críticas e suas demandas.

Isso no tocante à administração cotidiana do poder. Em relação à tentativa de renovação do mandato do presidente Lula, o comportamento do PT de fato cria dificuldades, mas daí a ser escalado para o papel de culpado de plantão vai uma distância semelhante à que separa o erro de avaliação da má-fé.

Há muitos outros obstáculos a serem transpostos e fatores a serem levados em conta, sendo o maior deles cláusula-mãe da renovação do contrato com o eleitorado.

Em 2002 ela foi sustentada na esperança de mudança, produto impossível de ser vendido duas vezes. Lula terá de reconstruir seu discurso eleitoral e, como não poderá fazê-lo apontando erros "do governo", terá de apresentar um cardápio de resultados satisfatórios o suficiente para despertar no eleitor o desejo da continuidade.

Tal tarefa não cabe só ao PT, bem como é indispensável a atuação do presidente na montagem das alianças partidárias, considerando a premência de uma vitória no primeiro turno. Na eleição de 2002, na segunda etapa juntaram-se todos os concorrentes contra o governista José Serra.

Pela lógica, em 2006 dar-se-á o mesmo contra Lula. Quanto menos postulantes houver, melhor para ele, cuja arte será saber juntar aliados sem com isso comprometer o perfil do segundo mandato.

Em 1998, Fernando Henrique Cardoso concorreu com poucos adversários, já estava desgastado pelo processo de aprovação da emenda da reeleição, mas acabou beneficiando-se do fato de ter sido percebido pelo eleitor como gestor eficiente de crises econômicas (naquele ano foi a da Rússia). Ainda assim, não ganhou com folga no primeiro turno.

Se, por um lado, o atual governo conta com a vantagem de não ter enfrentado crise externa na economia, por outro não se saiu bem na gestão de situações adversas, todas de origem política.

Não é absurdo pensar que para a campanha da reeleição o governo pretenda estabelecer prudente distância entre a figura do presidente e a atuação do PT, por causa da boa avaliação de um e a imagem de criador de caso do outro.

Seria o fator "carisma". A ser testado ainda eleitoralmente no molde da loquacidade adquirida pelo presidente após a posse. Lula ganhou em 2002 adotando um perfil de candidato oposto àquele que havia perdido três eleições.

Seus discursos veementes de hoje o aproximam mais do modelo antigo, na forma, não no conteúdo. Para resumir: ganhou de boca praticamente fechada, defendendo generalidades com o PT a reboque.

Três anos de exposição e um mandato quase inteiro depois não permitem a repetição do figurino. O sucesso ou o fracasso vão depender de qual deles, o candidato ou o presidente, agradou mais ao eleitor.