Título: Os gansos voadores e os patos sentados
Autor: Marcos Sawaya Jank
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Uma das grandes perguntas que a América Latina e o Brasil deveriam estar se fazendo é por que o desenvolvimento do Leste da Ásia tem sido tão impressionante. Esse foi um dos temas centrais abordados na recente reunião anual do Banco Inter-Americano de Desenvolvimento, em Okinawa, no Japão. Os dados ali mostrados comprovam que Lula acerta em afirmar que há uma nova geografia comercial no mundo. O problema é que ela se faz cada vez mais entre aquela região e o mundo desenvolvido, e muito pouco no sentido Sul-Sul, que tanto se apregoa por aqui. Infelizmente, a dura realidade do mundo em desenvolvimento é que, enquanto a África perde importância, a América Latina patina e o Leste da Ásia decola. Basta verificar que o PIB desses países asiáticos cresceu entre 6% e 10% ao ano nas duas últimas décadas, ante oscilações de -1% a 5% na América Latina. Não há dúvida que tivemos conquistas importantes, como a consolidação da democracia, o controle da inflação, o crescimento positivo (ainda que modesto), as reformas institucionais, a atração de investimentos e o recente surto de exportações. Ocorre, porém, que a Ásia nos deixou comendo poeira. Os fatos e os números falam por si.

A primeira diferença nasce nos anos 1950, quando a América Latina adota o modelo de industrialização na base de substituição de importações e a Ásia opta por uma agressiva estratégia de promoção das exportações. A semelhança dos dois modelos é a presença de governos dirigistas, que até mesmo selecionam setores "merecedores" de elevados subsídios e proteções pontuais. A diferença é que aqui o foco é o mercado interno, lá são as exportações.

A partir dos anos 80, surge no Leste da Ásia o que se convencionou chamar de "modelo dos gansos voadores", que nada mais é do que o aproveitamento das sinergias regionais por meio de maciços investimentos cruzados, com destaque para a transferência do poder tecnológico do Japão, por meio de participações minoritárias em empresas dos seus vizinhos menos desenvolvidos. Assim, a formação em cunha é liderada pelo superganso Japão, seguido de perto pelas chamadas "novas economias industrializadas" - Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura -, depois pelos países mais dinâmicos da Asean - Tailândia, Malásia e Indonésia -, com as Filipinas e a Indochina na rabeira. Mais recentemente, essa formação começa a se alterar com a chegada, em grande estilo, de dois outros enormes gansos selvagens: a China, que hoje já tenta ultrapassar o Japão, e a Índia, que voa baixo com grande determinação.

Vale notar que o desenho celeste se fez a partir de uma interessante divisão regional do trabalho no setor manufatureiro, com os países mais ricos repassando as atividades que demandam menor custo de mão-de-obra para parceiros ou filiais que se instalam nos gansos mais atrasados. O objetivo é atingir uma competitividade sistêmica global (e não local) que normalmente se inicia no setor têxtil, segue com as indústrias química, siderúrgica e automotiva e avança nos eletroeletrônicos e na tecnologia de informação. Estabelece-se, assim, uma seqüência de ciclos de industrialização nos quais os setores trabalho-intensivos vão sendo realocados nos países mais pobres à medida que os mais ricos aumentam a sua renda per capita e os salários. Na literatura recente há, inclusive, um interessante debate a respeito de a China estar ou não rompendo com esse padrão de produção e comércio.

Enquanto isso, a América Latina enroscou-se com inflações galopantes, baixo crescimento, alto endividamento, governos perdulários, instituições infantis e mudanças permanentes nas regras do jogo. Em 1993, o pesquisador Michael Mortimer, da Cepal, publica um artigo sobre o tema com o sugestivo título Flying geese vs. sitting ducks, sugerindo que a América Latina se comporta como "patos sentados" assistindo ao vôo dos gansos asiáticos.

O fato é que a industrialização acelerada fez com que ambas as regiões tivessem, já no começo dos anos 80, 40% do seu PIB concentrado na indústria. Duas décadas depois, agricultura e indústria representam um terço do PIB na América Latina e dois terços do PIB do Leste da Ásia. Apesar da superpopulação, o Leste da Ásia destina hoje 42% da sua produção ao mercado externo, caminhando em breve para 50%. Enquanto isso, apenas 17% da produção latino-americana é voltada para o mercado externo. A indústria asiática torna-se global, a nossa permanece local.

Mais preocupante é a relação entre investimentos e produto interno. Enquanto na Ásia ela salta, entre 1960 e 2000, do patamar de 20% para 30%-35% do PIB, por aqui ficamos sentados nos 20% do PIB. O investimento asiático é garantido pelas maiores taxas de poupança interna, que permitem uma menor dependência de capital externo.

Além disso, de forma geral, o Leste da Ásia colhe melhores resultados na redução das desigualdades sociais - fruto de elevados investimentos em educação de base - e na construção de instituições mais sólidas que garantem menores custos de transação e maior respeito ao cumprimento das leis, dos contratos e dos direitos de propriedade.

Enquanto a América Latina opta por mecanismos de integração regional formais e incompletos, voltados para o comércio, a integração dos países asiáticos se dá por meio de investimentos empresariais e transferência de tecnologia orientada para a competição sistêmica no mercado mundial. A explosão do comércio regional asiático é uma conseqüência dos investimentos intra e entre empresas. A integração se faz pela internacionalização das firmas, e não por meio de acordos imperfeitos entre governos, que criam pouco comércio e investimento. A idéia dos acordos bilaterais só chegou à Ásia recentemente, mas tem hoje enorme potencial para organizar o vôo dos gansos, se eles continuarem espertos o bastante para não se perderem em velhas querelas de poder, como o conflito Japão x China.

Em suma, o Leste da Ásia vai atingindo um vôo de cruzeiro sem turbulências, sustentado pela estabilidade dos seus fundamentos econômicos, pela persistência da ação empresarial voltada para comércio internacional, pela construção de instituições sólidas e por maciços investimentos em educação. E a América Latina? Vai continuar assistindo ao espetáculo sentada?