Título: O ontem seria hoje
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

A acrimônia e até mesmo a ofensa grosseira de que tem sido alvo o papa Bento XVI, apontado como nazista ou o "papa panzer", desvelam hoje o passado de ontem, vivido nos anos 1960. A pretexto de mudar, estimulado pelos ventos novos do Concílio Vaticano II, o marxismo infiltrou suas teses na Igreja, que era então rigorosamente anticomunista. Reconheçamos, foi a maior conquista dos adeptos de Marx no século 20: uma conversão ao contrário, de combate ao Estado ateu e antiteísta a companheiro de viagem, ao esquecer que Marx disse que a alienação básica era a religião, já que o homem é um ser dividido, enquanto profano e religioso, cuja conciliação exige que a religião desapareça. A eleição do cardeal Ratzinger fez drenar o tumor. Uns, dizendo-se liberais e em nome deles falando (sem definir o que é ser liberal em termos religiosos), se queixam da escolha de "um alemão conservador" para suceder a João Paulo II como "um revés contundente para os liberais de todo o mundo". Outros, falando de dentro da Igreja, clérigos que são, se confessam decepcionados, pois "torciam por outro" e, ultrapassando os limites do respeito devido, descrevem sua frustração com termos soezes: "Escolha infeliz que fortalece os bispos reacionários e medíocres." Palavras de um frade!

Ligo esse despautério ao que vivi pessoalmente no começo dos anos 1960. Eu era chefe do Estado-Maior do Comando Militar da Amazônia, quando nos chegou um documento sigiloso do Estado-Maior do Exército. Alertava para a presença de jovens comunistas nos seminários. "Delírio", pensei, católico praticante que, ainda estudante secundarista, presidente do diretório estudantil, fora convidado sucessivamente pelos integralistas e colegas comunistas que buscavam cooptar-me. A ambos resisti. Aos integralistas (ouvi o padre Hélder Câmara, orador cativante, num comício público em Belém) porque via neles o mimetismo dos nazistas, que eu odiava. Aos comunistas porque, professando uma confissão religiosa, era incompatível com o materialismo histórico, pois todo marxista deve ser, necessariamente, materialista. Católico, transcendentalista, pois, crente em Deus e na existência da alma, não podia ser comunista e aceitar que a religião faça "o homem alienar de si o seu ser essencial e se perder ao seguir na ilusão de um mundo transcendente". Minha discordância não era apenas porque Marx escreveu que "a religião é um ópio para o povo". Isso permitiria a interpretação falaciosa dos comunistas de que ele retratava uma Igreja da "moral da resignação", uma justificação transcendente das injustiças sociais, exploração do homem pelo homem na Terra em troca do Céu. Mero sofisma, mas que impressiona, porque Marx defendia "a supressão da religião como condição da felicidade ilusória do povo", e não apenas uma forma, em si alienante, do magistério da Igreja do seu tempo.

Admirador, em 1962, das mudanças da liturgia feitas pelo Concílio Vaticano II e empolgado com a encíclica Mater et Magistra, de João XXIII, julguei que o documento do Estado-Maior do Exército era fruto do exagero de algum anticomunista apaixonado. Não imaginava que no presente veria o ontem. Ministro do governo Médici, recebi do ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, um convite para ir ao seu gabinete. Lá chegando, vi uma fita de televisão na qual jovens frades dominicanos, do convento das Perdizes (São Paulo), confessavam, em depoimento à polícia, sua colaboração direta com o líder comunista Carlos Marighella, na luta armada. Com uma só exceção, tranqüilos e até arrogantes. Um disse que fizera o levantamento de quartéis da Polícia Militar e do Exército, bem assim de hospitais e farmácias ao longo da rodovia Belém-Brasília. "Para quê?", perguntaram-lhe. "Para entregar ao Carlos", respondeu. Que Carlos? Carlos Marighella. Fiquei estupefato. Não era novidade histórica a presença de religiosos na política, desde frei Caneca, Diogo Feijó e do cônego Batista Campos no Pará, um dos líderes da Cabanagem. Todos políticos atuantes, mas pela primeira vez membros de uma organização de base comunista clandestina, até com codinomes, para se guardarem de identificação. Parte dos quais não resistiu, seguiu covardemente as instruções dos policiais e levou Marighella à emboscada fatal.

Ainda quando estudante católico, extasiou-me a leitura de um livro magnífico, Itinerário de Marx a Cristo, de Ignace Lepp. De filósofo marxista, agitador comunista, preso na Alemanha de Hitler e condenado à morte, conseguiu evadir-se rumo à União Soviética. Nela se tomou de desencantamento, ao comparar o que pregava e o que viu na realidade do socialismo tirânico, e se converteu ao catolicismo. Dele, sobre o materialismo marxista, li que "deve ser compreendido no sentido forte do termo, e não como querem certos comunistas cristãos ao tentarem vê-lo apenas como um método de explicação do social pela predominância dos fatores econômicos". A expressão "comunistas cristãos" pareceu-me um oxímoro, mas depois que estudei a Teologia da Libertação vi que nada tinha de palavras contraditórias. Daí a injúria que sofre o papa, que ainda cardeal os combateu em nome da integridade da fé.