Título: Seqüelas da laborfobia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2005, Notas e Informações, p. A3

As vaias de 1 milhão de pessoas ao presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, no 1.º de Maio da Força Sindical, em São Paulo, decerto soaram no Planalto como música das esferas celestiais. Não só porque o presidente Lula, na entrevista da sexta-feira, incluiu sua eleição para a presidência da Câmara dos Deputados entre os três maiores erros do seu governo nestes 28 meses de mandato - "não ter tido uma participação maior na sucessão na Câmara", admitiu ele ao repórter que lhe pedia para falar dos seus erros, depois de alguma relutância. Mas porque, desde então e pela primeira vez em décadas, o Executivo perdeu o controle sobre a agenda daquela Casa do Congresso, só lhe restando, para evitar o pior, a obstrução das votações, recurso heróico das minorias parlamentares. Os apupos também foram auspiciosos para todos quantos acreditam que o povo não é bobo, está informado das coisas da política e repudia francamente o severinismo - como se pode denominar o conjunto dos mais nefastos usos e costumes dos políticos brasileiros: clientelismo, fisiologismo e nepotismo. Mas é pouco provável que a espontânea rejeição popular à sua figura induza o rei do baixo clero a deixar de ser o monarca absolutista que, em nome da decantada "autonomia do Legislativo", manda e desmanda na pauta de votações, com a nítida intenção de criar dificuldades para vender facilidades ao presidente Lula e, de quebra, se mostrar aos brasileiros um líder de igual envergadura.

Há poucas semanas, por exemplo, Severino decidiu pôr em votação, separadamente, o dispositivo da reforma tributária que aumenta os repasses da União para os municípios. O governo incluíra o aumento no projeto como uma espécie de moeda de troca para a aprovação do texto completo. Os problemas criados pelo deputado pernambucano para o seu conterrâneo presidente, em meio aos desentendimentos na base situacionista, seriam de monta em quaisquer circunstâncias. Mas antes fosse o que o líder da minoria José Carlos Aleluia, do PFL, considera o colapso do processo legislativo o único gargalo a bloquear o governo - por culpa do presidente.

Mais entranhado e de mais difícil eliminação é o congestionamento de medidas administrativas na Casa Civil. Reportagem publicada domingo neste jornal mostra as conseqüências da concentração de poderes - e acúmulo de tarefas - nas mãos do multiministro José Dirceu. Na reforma ministerial de 2004, Lula criou a Pasta da Coordenação Política, entregue ao deputado Aldo Rebelo, do PC do B, para que Dirceu, promovido a "capitão do time", se concentrasse na coordenação da administração. O resultado foi o pior dos mundos. Curado das marcas do Waldogate, ele se pôs a desestabilizar o aliado Rebelo, enquanto, com os olhos maiores do que a boca - e beneficiado pela laborfobia do presidente -, acumulava funções sobre funções.

Gerente do governo, ministro da reeleição e chanceler eventual, Dirceu simplesmente não daria conta da incumbência primeira ainda que o seu zelo na gestão das coisas equivalesse ao seu empenho no controle das pessoas, e ainda que tivesse, para a administração pública, a mesma aptidão de que se gaba de ter para a política - e a mesma reconhecida fixação pelo poder. A multiplicação das atribuições de Dirceu abriu na Casa Civil um buraco negro, onde as iniciativas "não ultrapassam a aurora do dia seguinte", na expressão demolidora de um ministro citado na matéria. Um velho dito americano ensina que a melhor forma de acabar com uma idéia é criar um grupo de trabalho para levá-la adiante. No Planalto, os grupos de trabalho passam de 220.

Volta e meia o presidente reúne o Gabinete e cobra resultados. No dia-a-dia, porém, "não está nem aí" - e esse alheamento é a razão de ser dos gargalos políticos e administrativos do governo. Tanto a omissão afinal confessada, no caso da eleição de Severino, quanto o inconfessado desinteresse pelas maçantes servidões da administração pública resultam, em última análise, de um único e irredutível problema. Mais do que fazer política e muitíssimo mais do que administrar, Lula gosta mesmo é de pedir votos. É com indisfarçado prazer que já se dá por inteiro à campanha pela reeleição, a ponto de não se constranger em anunciar que cumprirá certa promessa "até 2008".

Como resumiu um desiludido João Ubaldo Ribeiro na sua crônica no Estado de domingo, "isso nunca foi administrar ou governar, nem aqui nem no seu invejado Gabão".