Título: Crédito em risco
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2005, Notas e Informações, p. A3

Na mesma semana em que o presidente Lula anunciou o Programa Nacional do Microcrédito Orientado, concebido, segundo ele, para dar "às pessoas possibilidade de acesso a dinheiro que antes não tinham", o site do STJ anunciou que uma de suas turmas começou a discutir a legalidade da cláusula contratual que autoriza as instituições financeiras a descontar diretamente da folha de pagamento o valor dos empréstimos concedidos a seus clientes.

Esses fatos não são isolados. O programa anunciado por Lula faz parte de um conjunto de medidas que o governo vem implementando desde 2003, para oferecer à população de baixa renda empréstimos com juros mais baixos do que os cobrados pelos bancos, nas linhas convencionais de financiamento. A iniciativa de maior êxito foi o crédito consignado - a concessão de empréstimos, mediante desconto em folha de pagamento. Desde que o governo autorizou bancos e financeiras a cobrar o valor do empréstimo do cliente quando seu salário cair na conta, mais de 5 milhões de pessoas já tomaram R$ 15,5 bilhões emprestados, em crédito consignado. Desse total, R$ 5 bilhões foram emprestados a aposentados do INSS, que, em sua maioria, ganham até dois salários mínimos.

É justamente esta a preocupação da Justiça. Diante de tantas facilidades concedidas à população de baixa renda, os juízes temem que ela venha a se endividar muito acima de suas possibilidades de pagamento. Seduzidos pela publicidade do dinheiro fácil, aposentados, servidores e trabalhadores poderão não se dar conta, ao assinar um contrato de crédito consignado, de que o desconto em folha das prestações reduz o valor líquido de suas aposentadorias ou salários.

O STJ começou a discutir a legalidade do desconto na folha de pagamento a partir de um recurso impetrado pela Cooperativa de Economia e Crédito Mútuo dos Servidores Municipais de Porto Alegre (Cooperpoa) contra uma decisão da Justiça gaúcha que considerou ilegal o desconto de empréstimos em folha. A ação foi movida por um funcionário público. Alegando que o valor líquido de seus salários não lhe permitia manter a família, ele questionou a forma de pagamento de sua dívida contraída com a Cooperpoa. Ao acolhê-la, a Justiça estadual afirmou que o Código de Processo Civil proíbe a penhora de vencimentos. Segundo a sentença, salário é "verba alimentar, que diz respeito diretamente à dignidade e à própria sobrevivência do indivíduo", motivo pelo qual não pode ser suscetível de descontos, a não ser aqueles previstos em lei.

O problema é que, como os favorecidos pelo crédito consignado não dispõem de bens penhoráveis, a proibição do desconto em folha deixa bancos e cooperativas sem garantias. Por isso, diz a Cooperpoa em seu recurso ao STJ, a decisão da Justiça gaúcha é uma ameaça ao sistema financeiro, pois permite a cooperados, aposentados e trabalhadores tomar empréstimos com juros abaixo dos do mercado, em razão da garantia do desconto em folha, e, depois, cancelar a autorização, alegando impossibilidade de cumprir o contratado, o que deixa os credores sem ter como ressarcir seus prejuízos.

Diante do elevado número de ações semelhantes que tramitam nos tribunais, as atenções do sistema financeiro estão voltadas para a decisão do STJ sobre o recurso da Cooperpoa, pois ela poderá firmar jurisprudência. A corte, contudo, está dividida. O relator Aldyr Passarinho Jr. manifestou-se favorável à revogação da decisão da Justiça gaúcha, por considerar que o desconto em folha foi autorizado por um contrato livremente firmado entre as partes. Mas, ao julgar casos semelhantes, pelo menos três ministros já se declararam contrários ao desconto, sob o argumento de que o salário dos devedores tem "natureza alimentar".

Como o sucesso do crédito consignado está levando ao crescente endividamento de cidadãos de baixa renda, deixando juízes e economistas preocupados com as implicações legais e econômicas desse problema, o ideal seria que, independentemente da decisão do STJ, o governo promovesse uma campanha de esclarecimento, estimulando a população a recorrer ao microcrédito com moderação. Essa foi a saída adotada com sucesso na União Européia, para evitar que decisões judiciais contraditórias tumultuassem o mercado de crédito e que a inadimplência prejudicasse o sistema financeiro.