Título: Kirchner reclama de Lula e ameaça endurecer com o Brasil
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2005, Nacional, p. A4

O que vai mal entre Brasil e Argentina

Chanceler argentino admite que há conflitos entre os dois governos e não confirma viagem presidencial para cúpula em Brasília FMI: o presidente argentino reclama da falta de apoio explícito do governo do Brasil, e do presidente Lula em particular, nas suas duras negociações com o FMI. ELETRODOMÉSTICOS: Em julho do ano passado, a Argentina impôs restrições ao ingresso de eletrodomésticos brasileiros no mercado local, argumentando que estava sofrendo "uma invasão". Um acordo contornou a crise. CALÇADOS: O governo argentino ameaça impor, em 30 ou 40 dias, medidas restritivas à entrada de calçados no mercado do país, argumentando que as empresas brasileiras ultrapassaram a cota de exportação acertada. SALVAGUARDAS: A Argentina propôs em setembro a adoção de um sistema de salvaguardas comerciais no Mercosul, o que lhe permitiria aplicar medidas protecionistas. Mas o chanceler Rafael Bielsa se queixa de que a proposta "até agora não teve uma resposta favorável" do Brasil. FAZENDA: Causou profunda irritação no governo argentino a nomeação de Murilo Portugal como secretário-executivo do Ministério da Fazenda. A equipe do ministro da Fazenda argentino, Roberto Lavagna, considera Portugal como um "inimigo" e o acusa de ter tido posições inflexíveis contra a Argentina quando era representante brasileiro no FMI.

PONTOS DE ATRITO Ariel Palacios Correspondente BUENOS AIRES

O governo argentino parece ter decidido endurecer ainda mais com o Brasil, seu principal parceiro comercial e estratégico e com o qual já há meses mantém relações tensas. Ontem, fontes da Casa Rosada, sede do governo, num recuo com relação à semana passada, avisaram que "ainda não está confirmada" a viagem do presidente Néstor Kirchner para a reunião de cúpula entre países da América do Sul e árabes que será realizada na semana que vem em Brasília.

Dias atrás, o chanceler Rafael Bielsa confirmou a viagem de Kirchner. Ontem, a informação era de que estava apenas "agendada". À tarde, Bielsa admitiu a existência de rusgas entre os dois governos. Segundo ele, há um "capital histérico" no meio das relações bilaterais, já que a proposta feita pela Argentina em setembro para implementar um sistema de salvaguardas comerciais no Mercosul "até agora não teve resposta favorável" do Brasil. Com esse mecanismo, o governo argentino poderia aplicar medidas protecionistas para impedir o que denomina de "invasão" de produtos brasileiros.

Neste fim de semana, Bielsa reuniu-se em Washington com embaixadores argentinos em postos cruciais, entre eles Juan Pablo Lohlé, representante em Brasília. Segundo fontes citadas pelo jornal El Clarín, o grupo analisou a possibilidade de um "endurecimento" das relações com o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O jornal indica que Kirchner estaria "cansado" dos "obstáculos econômicos postos pelo Brasil".

Além disso, ele estaria melindrado pela falta de apoio do governo Lula à Argentina nas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI). E existiria profunda irritação com a escolha de Murilo Portugal para secretário-executivo do Ministério da Fazenda. A equipe do ministro da Fazenda argentino, Roberto Lavagna, o considera um "inimigo" e o acusa de ter tido posições inflexíveis contra a Argentina quando era representante brasileiro no FMI.

Coincidindo com a notícia do encontro de Washington, Bielsa publicou ontem no Clarín um artigo em que indica que a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) fracassou, mas não está morta: "Não existe impedimento ou condicionamento que nos impeça de avançar." Há cerca de 15 dias, Lula jactou-se de ter "segurado" as negociações sobre a Alca.

À tarde, o chanceler disparou contra o Brasil. Disse que antes de pensar no desenvolvimento da Comunidade Sul-Americana de Nações - criada com apoio do governo Lula e vista com reticência por Kirchner - é preciso "resolver o déficit institucional do Mercosul". Outra questão que irritou Kirchner foi o papel de destaque do governo Lula na crise política do Equador.

Na Casa Rosada há o temor de que o Brasil se torne hegemônico na região. O analista político Oscar Raúl Cardoso diz que na equipe de Kirchner predomina a sensação de que a Argentina foi "sócio devoto", alinhando-se com os interesses brasileiros, mas em troca não recebeu nada além de "contas de vidro e outras amenidades".

AUSÊNCIAS

Kirchner já faltou a outras reuniões internacionais em que o Brasil teve destaque. Por questões de agenda, segundo uns, ou por despeito, para outros. A meados de 2004, ele não foi à cúpula do Grupo do Rio. Bielsa só confirmou a ausência horas antes do encerramento.

Em dezembro, Kirchner não compareceu à reunião de presidentes em Cuzco, Peru, na qual foi lançada a Comunidade Sul-Americana de Nações. Na ocasião, comentou que só ia a cúpulas que achava "importantes" e não apreciava "ir de coquetel em coquetel". No meio diplomático em Buenos Aires considera-se que o ego do presidente foi duramente abalado na semana passada, quando a secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, esteve no Brasil, na Colômbia e no Chile, mas não na Argentina.

Kirchner também torpedeia a aspiração brasileira a uma vaga permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e não deu apoio à candidatura do brasileiro Luiz Felipe de Seixas Correa para presidir a Organização Mundial do Comércio (OMC). Nos meios políticos argentinos afirma-se que Kirchner teria dito: "Se há um posto vazio na OMC, o Brasil o quer. Se há um lugar na ONU, o Brasil o quer. Se há um lugar na FAO, o Brasil também o quer para ele... Se até queriam ter um papa brasileiro!"