Título: Enfermeira Erna revela como foi o fim de Hitler
Autor: Luke Harding
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2005, Internacional, p. A12

Pela primeira vez, ela relatou o clima dos dias finais no bunker Ela é a última testemunha. Durante 60 anos, Erna Flegel nada disse sobre seu papel no 3.º Reich. A família dela sabia que nas últimas e desesperadas semanas da 2.ª Guerra, Erna tinha morado em Berlim, mas nunca falou sobre seu emprego como enfermeira de Hitler nem do tempo que passou no bunker do führer. Agora, com a aproximação do 60.º aniversário do fim da guerra na Europa, pela primeira vez, Erna falou abertamente sobre suas experiências - as últimas horas de Hitler, da amizade dela com a "brilhante" Magda Goebbels e de seu desprezo por Eva Braun. O testemunho dela lança uma nova luz sobre os últimos dias da era nazista.

No domingo, em entrevista ao Guardian, Erna, agora com 93 anos e morando numa casa de repouso no norte da Alemanha, contou como começou a trabalhar como enfermeira da Cruz Vermelha na Chancelaria do Reich (Berlim) em janeiro de 1943. Ela fora transferida para lá da frente oriental.

Com o colapso do Exército alemão, Hitler ficou em Berlim a partir de novembro de 1944 e depois se retirou para o bunker. Daí em diante, Erna o viu com freqüência. "A autoridade dele era extraordinária. Era sempre cortês e encantador. Não havia nada a objetar em relação a ele."

A existência de Erna só veio à tona depois que a transcrição de uma entrevista dada por ela aos interrogadores americanos, em novembro de 1945, foi divulgada há quatro anos pela CIA. O Guardian descobriu seu relato sobre as últimas horas de Hitler em um cofre em Washington e o publicou. Mas seu paradeiro continuava um mistério. Há dois meses, um jornal de Berlim, rastreou a família por meio da Cruz Vermelha e de arquivos de guerra. Para espanto do jornal, a família disse que ela ainda estava viva.

Erna é a última testemunha feminina que esteve no bunker. Traudl Junge - a secretária de Hitler, cujas memórias inspiraram o filme indicado para o Oscar, Downfall (A Queda! As Últimas Horas de Hitler), e que deu numerosas entrevistas a jornalistas e historiadores, morreu em 2002. O outro sobrevivente, Rochus Misch, coordenador de comunicações de Hitler, agora com 88 anos, se recusa a falar.

Falando da sua casa de repouso, Erna disse que à medida que os russos se aproximavam de Berlim, os que estavam no bunker começaram a viver "fora da realidade".

Em meados de abril de 1945, Joseph Goebbels, o chefe da propaganda política nazista, sua mulher, Magda, e seus seis filhos se mudaram para o bunker. Erna, que cuidava de soldados das SS feridos, disse conheceu bem Magda. Quando ficou evidente que a situação era irremediável, Erna tentou convencê-la a enviar seus filhos para longe de Berlim. "Ela era um mulher brilhante, num nível superior à maioria das pessoas", afirmou Erna. "Eu queria que ela tirasse da cidade ao menos uma ou duas das crianças. Mas Magda respondeu que pertencia ao marido e os filhos pertenciam a ela". "Uma noite, ela disse que tinha de ir ao dentista e não podia ficar com as crianças e me pediu para dar boa noite a elas."

Erna, então com 33 anos, cantou para as crianças dormirem. "As crianças eram adoráveis. Deveriam ter permitido que elas vivessem. Não poupar as crianças foi uma insensatez horrível." Segundo Erna, Hitler gostava das crianças. Magda tolerava as conhecidas infidelidades do marido. "Ninguém gostava de Goebbels. Mas sempre havia pessoas que andavam à volta dele. Isso incluía muitas mulheres jovens e bonitas."

No seu depoimento original, Erna também descreveu como Hitler começou a desmoronar, antes suicidar-se em 30 de abril de 1945. "Quando partes de Berlim já estavam ocupadas, era possível sentir, quase fisicamente, que o 3.º Reich estava se aproximando do fim", diz a declaração. "Hitler não exigia cuidados; eu estava lá para cuidar dos feridos. Ele envelheceu muito nos últimos dias, dando a impressão de um homem 15 ou 20 anos mais velho. Ele caminhava com dificuldade, pois seu lado direito ainda estava muito enfraquecido após um atentado."

Erna disse que, antes de seu casamento com Eva Braun, na noite de 28 de abril, Hitler "afundou em si mesmo". Erna faz um retrato desagradável de Eva Braun, e diz que ela tinha uma "personalidade completamente apagada". "Ela não teria se destacado em meio a uma multidão de estenógrafas", acrescentou.

A decisão de Hitler de casar-se com Eva deixou "imediatamente claro para mim que isso significava o fim do 3.º Reich", disse Erna, afirmando que a morte da cachorra de Hitler, Blondi, "nos afetou muito mais" que o suicídio de Eva Braun.