Título: Todos os trunfos do papável d. Cláudio
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/04/2005, Vida&, p. A22

No país do futebol, costuma-se dizer, numa ironia acaciana e divertida, que o jogo só acaba quando termina. Também aconselha-se nunca jogar a final já vestido com faixa de campeão. Essa tradição popular, reforçada pelo ditado de que nos conclaves quem entra papa sai cardeal, parece nutrir o ar desconfiado com que os brasileiros têm recebido as notícias sobre o favoritismo do cardeal Cláudio Hummes na votação que começa no dia 18. Na semana que passou, especialistas e jornalistas do exterior pareciam mais entusiasmados que os daqui. Ao apresentar o breve perfil do cardeal na internet, o jornal The Washington Post chamou-o de "defensor dos trabalhadores e dos pobres" - saudação semelhante à que jornais europeus fizeram dois anos atrás, quando d. Cláudio esteve naquele continente para falar sobre a situação dos trabalhadores brasileiros. A rede CBS lembrou que ele comanda "a maior diocese do país com o maior número de católicos do mundo". O francês Le Figaro observou que pela primeira vez na história os nomes dos latino-americanos parecem mais importantes que os dos italianos - e citou especificamente d. Cláudio.

É difícil dizer onde está o exagero. Se no entusiasmo da mídia estrangeira ou no pé atrás dos brasileiros. Mas, analisando as vantagens e as desvantagens do arcebispo na corrida pelo papado, é possível dizer, salto alto à parte, que tem boas chances.

Para listar nomes de papáveis, os especialistas procuram definir antes o perfil ideal da pessoa que os cardeais procuram para o trono. Há vários modelos em circulação no noticiário. O franciscano d. Cláudio não se encaixa em todos - mas boa parte deles, especialmente os mais ecléticos, parecem cortados sob medida para ele.

De acordo com o perfil articulado pelo jesuíta americano Thomas J. Reese, editor da revista católica America e autor do livro O Vaticano por Dentro, a idade do papa ficará entre 62 e 72 anos. ele terá de falar vários idiomas, especialmente o italiano - a língua do povo de Roma, cuja diocese é dirigida pelo papa - e o inglês.

Não será um clone de Karol Wojtyla. Espera-se, contudo, que dê continuidade ao legado dele, agindo de forma liberal diante de questões de justiça social e com tradicionalismo na defesa da doutrina da Igreja. Há uma forte torcida para que seja menos centralizador, dando mais poder às conferências episcopais nacionais.

Outra característica desejável, segundo Reese, é a experiência pastoral. O papa não deve ser escolhido no meio de cardeais que passaram a maior parte da vida em Roma e aprenderam tudo sobre a burocracia do Vaticano, mas sabem pouco do difícil trabalho nas dioceses.

É consenso, em quase todos os modelos de perfis, que o papa não será americano. Os cardeais sabem quão temerário seria associar o poder espiritual de Roma ao da única potência do mundo.

Não há consenso, porém, a respeito do continente do qual emergirá o escolhido. O que chama a atenção nas especulações em Roma é que a possibilidade de o sucessor ser latino-americano nunca foi tão forte.

Há várias razões para isso. No "continente da esperança", como dizia Wojtyla, o catolicismo continua crescendo, especialmente os movimentos mais conservadores e fiéis a Roma. As vocações sacerdotais também estão em alta, enquanto nos países desenvolvidos elas mínguam. Por outro lado, a distribuição de renda na região é a mais desigual do mundo, confirmando as críticas dos bispos aos exageros da globalização.

Um papa latino daria força à defesa da justiça social e, de quebra, ajudaria a conter a ameaça das religiões evangélicas, que avançam sobre o rebanho católico.

MODERADO

Onde o cardeal Hummes se encaixa? É latino-americano, tem 70 anos e é apontado como um moderado - a meio caminho entre os setores progressistas e conservadores da Igreja. Alinha-se no grupo dos cardeais engajados na defesa da justiça social. Fala fluentemente três idiomas além do português: italiano, francês e alemão.

Originário da família alemã, só falou nesta língua até os seis anos. Sua tese de doutorado em filosofia foi redigida em italiano e o trabalho de especialização acadêmica, sobre ecumenismo, em francês. Também consegue se comunicar em espanhol e, com menos facilidade, em inglês.

Domina a burocracia do Vaticano, mas em 30 anos de vida episcopal dedicou-se sobretudo ao trabalho administrativo e pastoral nas três dioceses que dirigiu: Santo André, Fortaleza e São Paulo.

Foi sagrado bispo por Paulo VI (1963-1978), mas soube afinar-se com o pensamento de João Paulo II durante todo o pontificado dele. Tanto que em 2002 foi pregar no retiro espiritual anual Cúria Romana, diante do papa e dos cardeais próximos dele. Mas tem estilo próprio. Em diversas ocasiões deu a entender que gostaria de ir além, defendendo maior abertura no diálogo da Igreja com a sociedade e com outras religiões.

Em 1999, ao fazer uma conferência no Pontifício Conselho de Justiça e Paz, defendeu a idéia de um diálogo corajoso e franco com o mundo contemporâneo, "com a ciência, os avanços na biotecnologia, com a filosofia e as culturas, com a política e a economia, com tudo o que tenha algo a ver com a justiça social, os direitos humanos e a solidariedade com os pobres".

No trabalho diocesano tenta trabalhar com as diferente tendências religiosas. Em São Paulo mostra simpatia pelas comunidades eclesiais de base, ligadas à Teologia da Libertação, e admira o trabalho do padre Júlio Lancellotti com os moradores de rua.

Também já ganhou elogios da Renovação Carismática e de setores conservadores. Nomeou recentemente um sacerdote ligado à rígida Opus Dei para o cargo de diretor espiritual do seminário da arquidiocese.

A economista e educadora Jorgette Oliveira, diretora do Centro de Apoio ao Trabalhador (Ceat), criado há dois anos por d. Cláudio, observa: "Ele sempre mostrou muita abertura no trabalho. No presidência do conselho consultivo, dá palpites, ouve atentamente e debate as opiniões dos conselheiros."

A convite de organizações governamentais e não-governamentais da Europa, o cardeal já esteve duas vezes naquele continente para falar do Ceat - que no ano passado encaminhou cerca de 1,7 mil pessoas para o mercado de trabalho. Na Itália, foi homenageado pelas centrais trabalhistas.

Para o padre Lício de Araújo do Valle, assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Sul 2 e diretor-administrativo do Ceat, a possibilidade de d. Cláudio ser escolhido papa é real: "Se o perfil que os cardeais escolherem for o de um representante do Terceiro Mundo e aberto ao diálogo, as chances dele são muito boas."

É bom notar a conjunção condicional que o padre pôs no início de sua oração. Porque, se lá no conclave, o Espírito Santo soprar em outra direção e levar os cardeais a optarem por outro tipo de perfil, d. Cláudio vai voltar cardeal como foi. Apenas com mais prestígio. Ou, como se diz no País do futebol, com a bola toda.