Título: João Paulo II e a juventude
Autor: Carlos Alberto Di Franco
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

A madrugada avançava. João Paulo II vivia sua última noite de sofrimento neste mundo que ele tanto amou. Como escreveu o jornalista Clóvis Rossi, foi com os jovens o último diálogo, embora indireto, do pontífice agonizante. Ao ser informado de que havia uma multidão de jovens entre os milhares de pessoas que rezavam por ele diante de sua janela, na Praça de São Pedro, o papa, conforme o relato feito por seu porta-voz, Joaquín Navarro-Valls, teria murmurado: "Vi ho cercato/ siete venuti da me/ e vi ringrazio" (eu os procurei, agora vocês vieram a mim e por isso lhes agradeço). A mensagem do papa, divulgada pelas rádios e TVs, percorreu Roma como um rastilho de afeto. E uma impressionante onda de jovens varreu a Via Della Conciliazione e tomou conta do Vaticano. "Eu ouvi, peguei minha namorada e vim para ficar perto dele", contou Gianluigi Pettraglia, piercing discreto no nariz, igual ao da namorada, Graziela. A suposta frase do papa, comenta Clóvis Rossi, talvez tenha sido o último momento de consciência de João Paulo II. Impressionante a empatia do velho papa com a juventude.

Evoco, caro leitor, as imagens do último megaevento que reuniu João Paulo II e seus jovens seguidores. Diante de milhares de peregrinos, reunidos na celebração da 17.ª Jornada Mundial da Juventude em Toronto, o papa João Paulo II, então com 82 anos, se apresentou ao público como "um velho papa, com muitos anos de vida, mas ainda com coração jovem". No palco preparado para a cerimônia, caminhou apoiando-se numa bengala, cantou com os jovens e fez piadas sobre sua saúde.

A multidão recebeu-o com um entusiasmo impressionante. Usando tênis e mochilas, os "papaboys", como são apelidados os jovens que participam das jornadas católicas, receberam o pontífice cantando, dançando e entoando bordões como "João Paulo II, nós amamos você". O papa, encurvado e doente, continuou sendo um indiscutível fenômeno de massas. Os reiterados boatos sobre sua hipotética renúncia desabavam diante das imagens da TV. O desempenho de João Paulo II, sobretudo no meio jovem, foi, até o fim, uma charada que desafiou o pretenso feeling de certos estudiosos do comportamento. Afinal, o estereótipo do papa conservador, obstinadamente apegado aos valores que estariam na contramão da modernidade, foi contestado pela força dos fatos e pela eloqüência dos números.

Durante quase 27 anos de pontificado, as ruas, praças e esplanadas nos quatro cantos do mundo foram tomadas por barracas, mochilas e canções. A frustração de certos vaticanólogos só foi superada pelo ranço amargo de alguns ideólogos fracassados. De fato, as concentrações religiosas, imensas e multicoloridas, contrastavam fortemente com as previsões pessimistas dos profetas da morte de Deus.

Os desembarques do papa foram, freqüentemente, precedidos de discutíveis pesquisas indicando que parcelas significativas da população consideravam João Paulo II conservador e retrógrado. Chegou-se a falar, num burocrático exercício de futurologia, de prováveis fracassos de algumas de suas viagens e dos riscos de uma explosão de protestos contra a rigidez doutrinal da Igreja. As contestações, no entanto, quando ocorreram, ficaram limitadas a meia dúzia de cartazes. E nada mais.

A 17.ª Jornada Mundial da Juventude foi um bom exemplo do descompasso entre o autismo dos ressentidos e o arejamento do mundo real. As multidões que acompanharam o pontífice superaram todas as estimativas, levando um comentarista internacional a perguntar, em artigo perplexo e irritado, que mistério tinha João Paulo II para despertar "inabituais cenas de fervor e mobilização coletiva, que parecem anacrônicas nestes tempos em que a Igreja é acusada de ser conservadora, retrógrada e, por isso, distanciada da juventude". Como explicar o fascínio exercido pelo papa? Como digerir a força de um fato?

Vem-me à lembrança, enquanto escrevo este artigo, a cobertura que fiz para o Estado, em outubro 2003, do 25.º aniversário do pontificado de João Paulo II. Lembro-me, entre outros, de um depoimento sugestivo. Bruno Mastroianni era um jovem filósofo romano. Sobrinho de Marcello Mastroianni, o falecido ator de La Dolce Vita, de Fellini, nasceu depois da eleição de João Paulo II. Encontrei-o enturmado na Praça de São Pedro. "Nestes meus 24 anos", dizia-me então, "João Paulo II sempre esteve presente. Lembro-me quando era criança daquele homem vestido de branco, com aspecto de estrangeiro, mas, ao mesmo tempo, tão familiar. Mais tarde, durante os anos da adolescência, fiquei rebelde. O papa, no entanto, estava sempre lá, um pouco mais velho, mas sempre forte. Dizia-nos, então, que o amor de Deus era a única resposta, o único caminho para um futuro melhor. Agora, formado e iniciando minha vida profissional, aquele homem vestido de branco, longe de parecer um velhinho frágil e doente, continua lá. É uma rocha firme e segura. Acredito que para todos os jovens como eu não exista um melhor mestre do amor do que um papa tão enamorado de seu serviço ao mundo."

A incrível sintonia entre João Paulo II e a juventude oculta inúmeros recados. Num mundo dominado pela cultura do corpo e pela exaltação da juventude e da sensualidade, o velho papa quebrou todos os moldes. Ele foi, de fato, um sucesso mercadológico. Seu marketing, no entanto, teve raízes profundas: fé robusta, coragem moral e coerência doutrinal e, sem dúvida, a misteriosa magia da santidade.

O jornalista Vittorio Messori, no Corriere della Sera, antecipou o que considera deveria ser um dos primeiros passos do novo papa: dedicar-se "com empenho e alegria" a instruir o processo de beatificação e canonização de Karol Wojtyla. Para a juventude que lotou a Praça de São Pedro, o processo de canonização parecia dispensável. O papa já é tratado com a devoção que os fiéis dedicam aos grandes santos. Na verdade, para os que têm fé, só a santidade pode explicar o vigor de um dos mais importantes pontificados da História.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética da Comunicação e representante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra no Brasil, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia Ltda. E-mail: difranco@ceu.org.br