Título: Um dia casa cai. Cai? Quando?
Autor: Carlos Alberto Sardenberg
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/04/2005, Economia, p. B2

2004 foi um grande ano para a economia mundial. Houve crescimento em todas as regiões, praticamente em todos os países. O comércio internacional cresceu 10%, um número extraordinário. Ainda há contas a fazer, mas é quase certo que 2004 tenha sido o melhor dos últimos 30 anos. Essa forte expansão conviveu o tempo todo com três riscos: petróleo caro, uma realidade, e o temor de crises na China e nos EUA. Temor justificado, porque os pesados investimentos na China e o aquecido consumo americano têm sido as forças motrizes da economia mundial.

Curiosamente, 2005 repete o cenário. Os três riscos continuam aí. O petróleo, cujo preço havia subido 30% em 2004, escalou mais 35% no primeiro trimestre deste ano, ficando acima dos US$ 50 o barril.

A China continua superaquecida. E, nos EUA, permanecem os déficits gêmeos, de 6% do produto interno bruto nas contas externas e de mais de 5% nas contas públicas. (A propósito, se fosse qualquer outro país, já tinha caído nos braços do FMI.)

E, apesar disso, a economia e o comércio mundial continuam em expansão, em ritmo menor do que no ano passado, porém mais forte do que em 2003.

E daí? Será que o pessoal está exagerando nos riscos ou será que as ameaças estão de fato aí, sendo apenas questão de tempo para que se realizem? O petróleo está muito caro, mas não falta.

O consumo cresceu e continua crescendo, mas até aqui a produção tem sido suficiente. Verdade que a margem está apertada, consumo de 84 milhões de barris/dia, produção um tantinho maior. Isso potencializa o risco político envolvendo grandes produtores.

E se a Al-Qaeda conseguir detonar uma revolta na Arábia Saudita, dona das maiores reservas e da maior produção? A Arábia Saudita é estratégica, porque é o único grande produtor com capacidade de aumentar rapidamente a oferta.

Os demais, justamente aproveitando o tempo de consumo forte e preços na lua, estão produzindo tudo o que podem. A Arábia Saudita é uma ditadura que parece firme, com eventuais oposições bloqueadas por forças de segurança bem equipadas e não limitadas.

Mas, justamente por ser uma ditadura, ninguém sabe bem o que se passa por lá. E então, e se houver uma guerra civil? Aí faltaria petróleo e os preços iriam a tal nível que fariam parecer as atuais cotações coisa de liquidação.

Além disso, se o mundo continuar em expansão, como continua, até onde pode subir o consumo de óleo? Quanto mais a China pode queimar? São especulações como essas que mantêm os preços elevados.

Não é brincadeira uma alta de 35% em cima de outra de 30% no ano passado. Só para se ter uma idéia, a banda de preços da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), fixada apenas um ano atrás, ainda vai de US$ 22 a US$ 28 o barril.

No papel, o critério diz o seguinte: preços abaixo do piso, corta-se a produção; acima do teto, aumentase. Reparem: poucos meses atrás, a Opep entendia que US$ 28 era um teto. O que fazer quando os preços resistem acima de US$ 50? No momento, é uma festa para os produtores.

Mas, se essas cotações levarem a uma inflação mundial e, pois, desaceleração e recessão, o consumo despenca e, junto, caem os preços. Depois da crise dos anos 70 e começo dos 80, a cotação do petróleo chegou a menos de US$ 10 o barril.

Estamos perto de uma recessão assim? Embora elevados, os preços atuais, descontada a inflação, ainda são inferiores aos da crise dos anos 70, que seriam equivalentes hoje a US$ 80 por barril. Além disso, o mundo aprendeu e é menos dependente de petróleo.

Há mais alternativas e se obtém muito mais energia de uma mesma quantidade de petróleo. (A propósito, é glorioso o futuro do álcool brasileiro, nesta era dos carros biocombustíveis. Idem para o gás de Santos.) Além disso, como notou recentemente o FMI, os bancos centrais, hoje, e pelo mundo afora, têm mais credibilidade (e mais instrumentos) no combate à inflação.

Por tudo isso, o mundo continuou em expansão, com inflação muito baixa, mesmo com o petróleo caro. E continua assim.

Os prognósticos para 2005 e 2006 não apontam risco de inflação.

Tudo bem, portanto? O problema é o efeito acumulação. Quando o petróleo passou dos US$ 30 o barril, especulou-se: um ano assim e a crise está entre nós. A cotação foi a US$ 40 e se comentou: disso não pode passar. Pois está em US$ 50 e o mundo não acabou. Ainda não, pelo menos. E o diabo é que não se sabe qual o limite.

A mesma história vale para os outros dois riscos. Há pelo menos dois anos a China está à beira da desaceleração ou crash. Nesse mesmo período também se pergunta: até quando o mundo vai financiar os déficits americanos? A China segue em expansão e os EUA, gastando mais do que têm. Do mesmo modo que no caso petróleo, também se teme o efeito acumulação.

Um dia a casa cai, especula-se. É verdade que alguns governos - China, Japão, Coréia do Sul, detentores de pesadas reservas em dólares (dinheiro e títulos do Tesouro americano) - manifestam seu desconforto com a desvalorização da moeda americana, conseqüência dos déficits. Mas os EUA são o principal freguês das máquinas exportadoras desses mesmos países. Ou seja, não há interesse em levar a locomotiva americana a um crash. Assim como não há interesse em levar a China a uma recessão. Ou seja, há estímulos para um arranjo internacional.

Resumo d a ó pera: é u m mundo arriscado, mas que cresce e tem chance de escapar do desastre.

*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista. Home page: www.sardenberg.com.br