Título: A esquizofrenia majoritária
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

O Campo Majoritário do PT lançou um documento que se reveste da maior importância por balizar as discussões que terão lugar quando do próximo Encontro Nacional. Não podemos esquecer que o partido continua sendo regido pelo Encontro de Olinda de 2001, no qual as velhas posições de esquerda foram reiteradas. O Campo Majoritário, como seu nome o indica, reúne a maioria do PT e entre seus membros mais destacados se encontram o próprio presidente da República, os ministros Palocci e José Dirceu e o atual presidente nacional do partido, José Genoino. Uma análise do documento mostra, mais uma vez, a relatividade das distinções entre "esquerda" e "direita" no PT, entre "moderados" e "radicais", entre "reformistas" e "revolucionários", pois o Campo Majoritário, dito "moderado" e "reformista", sustenta também posições "radicais" e "revolucionárias". Ele é igualmente atravessado por essas oposições, procurando apaziguá-las, sem, porém, solucioná-las. O PT continua sem enfrentar suas incoerências e contradições, permanecendo refém de conciliações impossíveis. O novo tem notórias dificuldades de se assumir diante do velho. Ele ganha posições somente na sustentação da atual política macroeconômica e, mesmo aí, tendo de enfrentar grandes obstáculos, que continuam relutantemente presentes.

A "Apresentação" do documento começa reiterando a fidelidade do Campo Majoritário aos "princípios e valores do PT" e aos seus "objetivos estratégicos" (pág. 1), sem, no entanto, explicitá-los, salvo genericamente sob a forma de metas como "socialismo petista" e outras do gênero. Seguindo uma via já comum nos documentos petistas, há um nítido problema de esclarecimento de posições que, se assumidas publicamente, colocariam o partido numa linha de continuidade com a tradição de esquerda, a qual, num jogo de palavras, é condenada no mesmo documento. A sua finalidade não consiste num compromisso com a verdade, mas com fazer passar uma mensagem equívoca que favoreça o seu projeto de poder.

O Campo Majoritário reconhece que deve integrar em seu projeto o trabalho propriamente governamental de ajuste da economia brasileira, que seguiu, em suas linhas mestras, a política macroeconômica do governo anterior. Entretanto, este é duramente criticado, como se o governo Lula, contra todas as evidências, tivesse efetuado uma ruptura na mesma política macroeconômica. Ou seja, o Campo Majoritário não reconhece a continuidade dessa política macroeconômica, o que propiciaria um entendimento com os tucanos, com a social-democracia, sobre os princípios de condução da economia, estabelecendo pontes e consensos que poderiam ultrapassar as fronteiras partidárias. Doutrinariamente, estabelece-se um qüiproquó, pois o PT se aproximaria da social-democracia na defesa de um princípio de origem liberal, que hoje se incorporou aos princípios de responsabilidade política na gestão dos recursos públicos.

Neste caso, haveria uma conversão do partido a princípios do liberalismo econômico e político. O documento apregoa o uso responsável de bens e recursos públicos, dentre os quais o "equilíbrio fiscal" (@ 6.º). Trata-se aqui de uma mudança importante, pois, na oposição, o PT se posicionava contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, que foi uma das maiores conquistas "republicanas" do governo anterior. O "equilíbrio fiscal" passa a ser considerado um valor suprapartidário, republicano neste sentido. O mesmo acontece com um outro princípio liberal, o de que o Estado não deve drenar recursos excessivos da sociedade via impostos e contribuições. Embora o governo atual tenha aumentado a carga tributária e até mesmo tentado continuar a fazê-lo com a MP 232, o documento se posiciona contrário ao "fiscalismo estatal" (@ 6.º). A sociedade deveria preservar-se contra uma carga excessiva de impostos e contribuições, pois só assim haveria uma concordância republicana entre a liberdade individual e os interesses do Estado. Apesar de não o dizer, o Campo Majoritário adota propostas que poderiam ser subscritas por qualquer partido liberal.

O documento, no entanto, sinaliza também para posições contrárias. Por exemplo, no final (@ 66), reitera as posições do partido em relação a uma posição de solidariedade com a esquerda latino-americana de vários matizes, por intermédio do reconhecimento de grandes acordos partidários internacionais. Isto significa o apoio à demagogia populista de Kirchner até Fidel Castro e as Farc, passando por Chávez e seu menosprezo pelas instituições democráticas. A afinidade se faz eletivamente com posições que menosprezam a economia de mercado, solapam as bases da democracia representativa e enfraquecem, se não destroem, as liberdades civis, políticas e econômicas. Segundo essa visão, os governos da Argentina e da Venezuela são considerados "progressistas", como se o progresso se caracterizasse pelo descumprimento dos contratos, pela constituição de milícias armadas e pela supressão das liberdades civis. Há um namoro com o autoritarismo de esquerda enquanto conclusão de um documento que, em outros pontos, diz aceitar incondicionalmente os princípios da democracia representativa. Do ponto de vista diplomático, isto significa que o País fica atrelado a posições partidárias, em que o interesse do Estado brasileiro permanece a reboque de posições ideológicas, nostálgicas do autoritarismo de esquerda.