Título: O 'aprendizado¿ do PT
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/04/2005, Editoriais, p. A3

Pela primeira vez desde que o PT chegou ao governo, o seu Campo Majoritário, como se denomina o "centrão" que une as duas maiores facções da sigla, Articulação e Democracia Radical, e representa cerca de 60% dos petistas, teve a oportunidade de afirmar, de papel passado, a sua adesão plena ao modelo de política econômica que, 13 meses antes da posse do presidente Lula, a agremiação havia definido como submissa "aos interesses e humores do capital financeiro globalizado" - com os quais prometia romper se ascendesse ao Planalto. Se a posição do PT em dezembro de 2001 parece história antiga, como se estivesse mais próxima de sua origem, há duas décadas, do que da investidura de Lula, por ter sido da água para o vinho a mudança empreendida nesse terreno pelo seu governo, menos longínqua é a nota da direção petista de março do ano passado contendo um pedido expresso de "mudanças na política econômica". Com isso, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, quis desviar para o seu rival da Fazenda, Antonio Palocci, os holofotes que o expunham no escândalo do Waldogate.

A rombuda operação gorou: o presidente jamais vacilou na defesa irrestrita da linha seguida por Palocci, graças à qual a economia vem tendo um desempenho que é o maior, se não o único trunfo palpável de Lula para a reeleição. O chamado fogo amigo que pretendia atazanar a vida do companheiro da Fazenda (e, por tabela, do companheiro presidente) praticamente cessou, ressalvados os habituais disparos do vice José Alencar - e dos campos minoritários do PT - contra a política de juros do Banco Central.

Seria impensável, portanto, que a vertente hegemônica na legenda, ao apresentar o seu programa para a eleição da executiva nacional em setembro, deixasse de fazer praça da orientação que Lula considera inegociável, com política monetária e tudo. Mas o documento Bases de um Projeto para o Brasil, aprovado no fim de semana pelos majoritários no Rio de Janeiro, é mais do que uma barretada protocolar ao presidente em campanha reeleitoral - e muito mais do que a apregoada trégua entre Dirceu e Palocci.

Na exegese das 44 páginas do texto, não faltou quem o considerasse exemplar em matéria de "uma no cravo, outra na ferradura", por enaltecer ora a austeridade fiscal, ora o papel do Estado de indutor do desenvolvimento, como se existissem na vida real um "monetarista" Palocci e um "desenvolvimentista" Dirceu, com visões opostas e inconciliáveis a respeito de uma coisa e outra. A "tese", modo pelo qual os petistas se referem a esse gênero de literatura partidária, não merece o apequenamento.

Embora exprima também a busca de um terreno comum no debate entre os moderados do PT sobre aspectos do programa econômico - não fosse este um documento político-eleitoral e não tivesse o PT nascido como um partido de idéias e de polêmicas (e de idéias polêmicas) -, ali se lê algo que vai muito além de um acerto ocasional para preservar o duradouro predomínio do centro sobre a organização. O verdadeiro acerto é com os números - o mesmo a que já chegaram os socialistas espanhóis, os trabalhistas britânicos e os democratas americanos. Daí a apologia "à lógica do equilíbrio orçamentário e fiscal".

Um parágrafo do documento começa com "O partido soube aprender..." Essa a sua essência. Aprendeu "que o descontrole da economia e das finanças públicas é sempre mais cruel com os pobres". No mesmo tom, invoca as lições de suas "experiências à frente do setor público". Notadamente, "a compreensão de que uma economia estável (...) é condição essencial" para o combate à pobreza. E ainda: "O aprendizado da primeira metade do nosso governo é que o caminho do desenvolvimento econômico será (...) processual." Nada mais tucano do que o uso do conceito de processo.

Nem só de economia trata a tese. Um partido com vazamentos à esquerda e incapaz de frear a candidatura avulsa de um seu deputado à presidência da Câmara tinha de insistir na "primazia do coletivo sobre os indivíduos". A advertência vem a calhar quando a cúpula do coletivo precisa que alguns indivíduos abram mão de suas pretensões a governos estaduais em favor de um PMDB que apóie Lula. Segundo uma versão, o ministro Dirceu quis até assustar os companheiros: "E se ele disser que só sai candidato à reeleição se tiver isso ou aquilo?", provocou. "A gente faz o quê?"