Título: Legítima defesa
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/04/2005, Editoriais, p. A3

Se regulamentasse com rapidez, como pede o empresariado de São Paulo, a adoção de salvaguardas contra a importação de determinados produtos chineses, o governo estaria, pelo menos, reduzindo as conseqüências negativas de sua decisão, anunciada em novembro, de reconhecer a China como uma economia de mercado. Mas, lamentavelmente - ao contrário das maiores economias do mundo, a começar pela americana e a européia, que se mobilizam para enfrentar a ofensiva comercial chinesa -, não está disposto a fazê-lo.

O reconhecimento foi um ato precipitado do governo Lula, pois é sabido que a economia chinesa está longe de gozar da liberdade de iniciativa observada nas verdadeiras economias de mercado. A taxa de câmbio e a atividade produtiva, por exemplo, são estreitamente controladas pelo governo chinês. Reconhecida a China como economia de mercado, ficará mais difícil para o Brasil comprovar que esse país pratica dumping, isto é, a venda no exterior por preço inferior ao praticado internamente. O reconhecimento ainda não foi formalizado, pois, para isso, depende de sua incorporação à legislação e de um comunicado oficial à Organização Mundial do Comércio (OMC).

Mesmo assim, a China tem todos os motivos para comemorar a atitude do governo Lula, motivada muito mais pelo desejo de ter "parceiros estratégicos" do que pelos interesses econômicos do Brasil. A China teve seu ingresso na OMC aprovado em 2001, mas sua admissão como membro pleno da organização foi condicionada à redução da intervenção governamental na economia e à sua transformação numa economia de mercado. Até 2013, os países da OMC poderão, em caso de danos econômicos provocados por produtos chineses, adotar medidas de salvaguarda que protejam sua indústria.

É exatamente a adoção dessas medidas que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) solicita ao governo. Para fundamentar o pedido, apresenta alguns números expressivos. No comércio de produtos industriais com a China, o Brasil obteve superávit de US$ 176 milhões em 2003. No ano passado, porém, embora no comércio total o Brasil tenha novamente obtido saldo positivo, o resultado para a indústria foi um déficit de US$ 1,63 bilhão. Entre 2003 e 2004, a importação de produtos industriais chineses aumentou 83%.

E a competitividade da China continua evoluindo. Também a demanda brasileira por produtos importados cresceu, com a ativação da economia. Mas esses fatores não justificam um aumento dessa ordem de grandeza. Há outros, entre os quais a falta de transparência das práticas econômicas e comerciais da China. As salvaguardas destinam-se a impedir que essas práticas prejudiquem excessivamente o país importador.

O governo argentino, mais cauteloso do que o brasileiro nessa questão, regulamentou as salvaguardas apenas um mês depois que o presidente chinês, Hu Jintao, visitou o país, depois da visita que fizera ao Brasil, em novembro de 2004. Os governos dos EUA e da União Européia apressam-se por estabelecer as suas.

Não é mais do que isso que pede a Fiesp, que, no terreno do comércio exterior, abandonou a atitude passiva que sempre teve e agora procura agir em defesa, legítima, de seus interesses comerciais. A criação, na Fiesp, de organismos na área de comércio exterior, desde que não se tornem instrumentos de protecionismo, pode fortalecer os mecanismos de defesa do setor produtivo brasileiro e, sobretudo, estimular o governo a atuar de maneira mais eficiente nas negociações e nos foros internacionais.

A expectativa do empresariado era de que, até o fim do mês, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) concluísse o exame de seu pedido. Mas o secretário-executivo da Camex, Mário Mugnaini, apenas admite que os números apontados pela Fiesp "acenderam o sinal amarelo" no governo, e diz que por enquanto se limitará a acompanhá-los com atenção. Pode ser uma atitude diplomaticamente conveniente, mas, nessa questão, como em outras, a China não age com sutileza. Em resposta a uma demanda da União Européia, respondeu que poderá retaliar parceiros comerciais que apliquem salvaguardas. Pequim interpreta do modo mais conveniente para os seus interesses as condições para ingressar na OMC. E alguns parceiros aceitam esse comportamento sem reagir.