Título: 'Reality show' da PF
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/04/2005, Notas & Informações, p. A3

P oucos anos atrás, duas brasileiras foram presas em Dublin, Irlanda, por suspeita de tráfico de drogas. A notícia, dada por uma rádio paulista, dizia que os seus nomes não eram conhecidos, porque a lei irlandesa proíbe a autoridade policial de divulgar a identidade de pessoas detidas antes de serem acusadas formalmente por algum delito. O episódio, revelador do escrúpulo de um país civilizado em matéria de respeito aos direitos individuais, vem à memória pelo seu contraste com os espetáculos que a Polícia Federal brasileira encena e torna a encenar ao arremeter contra suspeitos de crimes de colarinho-branco. Nesses reality shows, o papel da mídia é de involuntário ator coadjuvante.

A impunidade é uma arquiconhecida característica nefasta da vida nacional, que varia, pode-se dizer, na razão direta da posição social e do patrimônio dos transgressores afinal impunes. Analogamente, o narcotráfico é uma praga de alcance global. Mas nem por isso a Irlanda, por exemplo, permite que traficantes sejam condenados por antecipação - que é o que representaria a sua exposição pública quando nem sequer tivessem sido indiciados. Ali, as garantias da pessoa contam mais do que o presumível interesse da polícia em mostrar serviço, a todo custo, em uma área a que a população é sabidamente sensível - como é o caso, no Brasil, do festival de impunidade dos poderosos.

A face pública do inquérito da Polícia Federal no chamado caso Kroll - que envolve perto de uma vintena de nomes, como o banqueiro e empresário Daniel Dantas, do Grupo Opportunity, e a presidente da Brasil Telecom, do mesmo grupo, Carla Cico - é o capítulo mais recente desse teatro de marketing e bravatas. O lance publicitário começou pelo rótulo da investigação - Operação Chacal - e chegou ao auge nas imagens da executiva Carla deixando a PF, em Brasília, em meio a uma falange de agentes, advogados e repórteres. Mais esperto, Dantas chegou ao órgão policial, no Rio, muito antes da hora de depor, entrou pelos fundos e saiu em um carro com vidros escuros, enquanto os seus advogados atendiam a imprensa.

Esta não é ocasião para emitir juízos de valor sobre o controvertido banqueiro que acaba de ser acusado de formação de quadrilha, divulgação de segredo e corrupção ativa, ou sobre os seus colaboradores. No momento, o ponto para o qual conviria que a opinião pública atentasse é o que o deputado Paulo Delgado, do PT de Minas, denomina "demanda por espetáculo repressivo e arbitrário". Crítico habitual da atração de policiais, procuradores e participantes de CPIs pelos holofotes, Delgado disse à colunista Rosângela Bittar, do jornal Valor, o que em um país verdadeiramente civilizado e entranhadamente democrático nem mereceria registro, por sua manifesta obviedade.

"Em qualquer ação da autoridade pública o importante é que tenha o devido processo legal, para não acostumar a sociedade com o crime", argumenta. "A exibição de força, de forma ilegal, contra cidadãos ilegais, já é um erro. Mas, contra os que são apenas acusados de ilegalidade, é um escândalo." Os procedimentos espalhafatosos se nutrem de um clamor social que, louvável na origem, evidencia, porém, "a própria dificuldade de enfrentar os problemas mais complexos da sociedade brasileira", opina Delgado. "E consolidam, ao contrário do que parece, a noção de impunidade."

Isso porque os acusados tendem a ser absolvidos graças às exorbitâncias que contaminaram as denúncias. Depois, a Justiça lhes concederá indenizações milionárias. A conta, lembra o parlamentar, "não será paga pela PF, pelos integrantes da CPI ou do Ministério Público, mas pelo contribuinte". São inúmeros os exemplos de tiros estrondosos que saíram pela culatra. Delgado cita a absolvição do deputado Ibsen Pinheiro, cassado a pedido da CPI do Orçamento, e da senadora Roseana Sarney, no caso Lunus; o não-indiciamento do marqueteiro Duda Mendonça, preso numa rinha de galos; e a frustrada caça de procuradores facciosos ao então secretário da Presidência, Eduardo Jorge Caldas Pereira.

No caso Kroll, o deputado petista, insuspeito de simpatias por banqueiros, sustenta que a Polícia Federal, a pretexto de defender o Estado, intervém numa disputa de mercado. E acusa: "A PF interroga, indicia e atormenta a vida do pessoal do Opportunity, com um viés penal, visivelmente favorecendo um dos lados."