Título: Ministério quer limitar a ocupação das UTIs
Autor: Cida Fontes
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/04/2005, Vida&, p. A20

Humberto Costa, que está na África com o presidente Lula, diz que uma das idéias é aumentar a rotatividade na ocupação de leitos; OAB é contra as mudanças O ministro da Saúde, Humberto Costa, afirmou ontem que o governo está estudando normas para racionalizar o funcionamento das unidades de terapia intensiva (UTI) do serviço público de saúde. "Queremos estabelecer protocolos mais atualizados e adequados para dar mais segurança aos médicos", disse o ministro em Camarões, onde acompanha o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em viagem pela África. Segundo ele, as normas permitirão que os leitos de UTI tenham mais rotatividade e mostrarão como lidar com os pacientes em estado mais grave. O protocolo identificará, portanto, se o paciente tem realmente necessidade de ficar nas UTIs. "Às vezes as UTIs são ocupadas por doentes que não precisam estar lá efetivamente." Como exemplo, Costa disse que o protocolo vai mostrar se um paciente com morte cerebral deve ocupar ou não a UTI. "Se não tem um protocolo definido interna-se gente que não precisa."

O ministro argumentou que as normas não serão estabelecidas em função da escassez de leitos nem para controle financeiro, mas para dar racionalidade e apoio técnico. Costa informou que nos últimos dois anos houve um aumento de 2.500 leitos de UTI no serviço público, que dispõe de cerca de 20 mil leitos. Segundo ele, o governo está criando agora leitos de terapia semi-intensiva. Depois de concluídas, as normas serão apreciadas pelo Conselho Nacional de Saúde. Quando estiverem em vigor, a aplicação será fiscalizada pelos conselhos regionais de medicina e pelos Estados.

FALTA DE LEITOS

A medida mal foi anunciada e já desperta críticas de vários setores, inclusive das principais entidades médicas do País. "O ministério só fala em racionalização de leitos. Isso mexe muito pouco com o real problema de saúde no País, que é a falta de leitos", ataca Eleuses Vieira de Paiva, presidente da Associação Médica Brasileira (AMB).

A elaboração dos critérios também é alvo de preocupação do presidente da AMB. "A questão é delicadíssima. Não dá para ter um check-list que determine se um paciente entra ou sai da UTI. Deve-se pensar em fatores principalmente humanísticos e científicos para definir se o paciente é da UTI", conta Paiva. "É quase impossível ter essa preparação toda em alguns meses." O prazo de lançamento da nova política prometido pelo ministério é julho.

De acordo com Isac Jorge Filho, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), a decisão é louvável, mas pede cautela. "Qualquer norma que se crie em relação à permanência de um paciente na UTI é perigosa porque pode quebrar a autonomia do médico e, conseqüentemente, prejudicar o paciente."

O vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Clóvis Constantino, afirma que a entidade que representa ainda não foi chamada para debater o assunto. "Seja como for, cabe ao médico, ao paciente e à família decidir o destino do paciente. Não a técnicos do ministério", afirmou.

INCONSTITUCIONAL

O presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D'Urso considera inconstitucional a proposta do governo federal de restringir o uso dos leitos de UTI a pacientes nos hospitais públicos. "O artigo 196 da Constituição Federal é bastante claro, ao garantir que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Se, em decorrência da falta de leitos, o governo vai restringir o internamento de pacientes na UTI com base no diagnóstico, estará ignorando um direito constitucional de todos os cidadãos, condenando alguns á morte sem assistência."

Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Edísio Simões, a recomendação não resiste à primeira ação judicial que for movida. "É colocar o critério financeiro em primeiro lugar, tratar de forma diferenciada a população", ponderou.

Em nota, o ministério negou a restrição do acesso de pacientes críticos ao tratamento de UTIs. A recomendação, informou, continuará cabendo aos profissionais médicos. No entanto, o diretor do departamento de atenção especializada do ministério, Arthur Chioro, admitiu que, pela proposta da nova política, a recomendação pode ser feita pelo médico. Mas caberá a uma central de regulação, um centro encarregado de receber pedidos e encontrar vagas para pacientes, determinar, de acordo com as diretrizes, se é o caso ou não de o paciente ir para uma unidade intensiva.

"Protocolos podem ser feitos por gestores, mas nada que engesse a atividade do médico", afirmou o vice-presidente do CFM. "Vamos fazer o possível para que tal medida não vá adiante."

O presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), José Maria Costa Orlando, é um dos críticos mais contundentes da proposta. Ele afirma que uma discussão com o ministério foi iniciada em 2003, quando houve um aumento significativo de mortes de pacientes internados em UTIs no Ceará. "Somente retomamos as reuniões no fim do ano passado. Mas, desde o início, afirmamos que a restrição das internações não é o principal caminho para resolver o problema das UTIs."

Chioro, do ministério, afirma ainda que o déficit de leitos de UTIs no Brasil foi solucionado nos últimos dois anos, com a criação de 2.235 vagas de 2003 para cá. Orlando contesta. "O ministério está fazendo a conta errada. Para dizer que temos leitos suficientes, junta vagas do sistema particular. O que, claro, não devia ser feito."

Para Orlando, a prioridade deveria ser o aumento de vagas nas UTIs. "Mas o Humberto Costa afirmou em pronunciamento no ano passado, no Ceará, que o problema estava resolvido. E que agora ele partiria para instalação de unidades de terapia semi-intensiva nos locais onde não há nenhum serviço disponível", lembrou. "A idéia do ministro é imbecil. É propor serviço de qualidade meia-boca para pacientes que hoje não têm nada."

O presidente da Amib afirma ainda que protocolos com normas de internação até podem ser feitos. "Mas as medidas têm de ser associadas. O ministério quer passar a impressão de que todo o problema hoje é fruto da falta de gestão, de problemas administrativos. O que é uma inverdade."