Título: Política feita de equívocos
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/05/2005, Editoriais, p. A3

A investidura presidencial não deu a Luiz Inácio Lula da Silva a ciência infusa que lhe permitisse saber que, por razões históricas profundas, os argentinos nunca aceitariam de bom grado a hegemonia regional brasileira, principalmente se fundada em argumentos geopolíticos. Os funcionários do Itamaraty, no entanto, têm a obrigação de conhecer a fundo a história e a natureza do relacionamento entre Brasil e Argentina e, sabendo das idiossincrasias portenhas, a eles caberia moderar os ímpetos de grandeza do presidente Lula, que quer tornar-se líder hemisférico, contra tudo e contra todos. Fizessem direito o seu trabalho, Lula saberia que, entre as nações, não existem coisas como lideranças "naturais" determinadas por tamanho e vontade política. Teria, também, descoberto a tempo que liderança é um processo de conquista de confiança, de construção e promoção de interesses comuns e não de imposição de projetos e vontades. Mas o Itamaraty, nessa triste fase sob a bífida administração do chanceler Celso Amorim e do secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães, vive em outras esferas. Enquanto o presidente Néstor Kirchner, o ministro Rafael Bielsa, embaixadores e funcionários de segundo escalão do governo argentino abrem fogo contra os pontos centrais da política externa brasileira, queixam-se da arrogância com que são tratados e deixam claro que a Argentina endurecerá com o Brasil em toda a linha, a embaixada em Buenos Aires emite nota oficial negando a existência de qualquer crise entre os dois países. E o chanceler brasileiro vê "muita fumaça em tudo isso".

Pior que isso, a assessoria do presidente Lula busca nos arquivos e irradia no programa Café com o Presidente uma arenga gravada entre março e abril, na qual o presidente Lula afirma que, por ter a maior população, a maior economia e o maior potencial científico e tecnológico, o Brasil tem a "obrigação" de colocar-se à frente dos países vizinhos.

Há, sim, uma crise entre o Brasil e a Argentina. Mas há, antes de tudo, a crise da política externa brasileira.

Essa política é feita de equívocos. E o maior deles é a visão de mundo que prevalece no Palácio do Planalto e no Itamaraty. Num mundo globalizado, política e militarmente unipolar e marcado pela predominância econômica, tecnológica e comercial dos Estados Unidos e da Europa, a política externa recua 50 anos, na tentativa de fazer um eixo Sul-Sul que não oferece atrativos para ninguém, exceto aos saudosistas do terceiro-mundismo do general Geisel.

Em dois anos, o Mercosul não avançou um milímetro, do ponto de vista institucional e ainda sofreu o desgaste das medidas protecionistas adotadas unilateralmente pela Argentina, tratada, nesse particular, com uma leniência que só contribuiu para o quase esfacelamento político do bloco. E, em vez de consolidar o Mercosul, a sua primeira e mais importante área de influência, o Brasil lançou-se à aventura da criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, uma colagem do roto - o Mercosul - com o esfarrapado - a Comunidade Andina de Nações.

Numa declaração atribuída ao presidente Kirchner resume-se o açodamento da política brasileira: "Há um lugar na OMC, o Brasil quer; há um lugar na ONU, o Brasil quer; há um lugar na FAO, o Brasil quer. Se até quiseram eleger o papa!" Além disso, o Itamaraty deu as mais bisonhas demonstrações de desconhecimento de um dos princípios básicos das relações internacionais, oferecendo-se como mediador - isto é, metendo-se onde não era chamado -, primeiro na Colômbia, depois na Venezuela, seguindo-se a Bolívia e o Equador.

Mas o mais ominoso foi o paradoxo em que se meteu a política externa brasileira. Essencialmente antiamericana - contra a Alca, contra a influência americana na América do Sul, contra o unilateralismo de Bush, contra a hegemonia americana em todos os foros -, para viabilizar o seu objetivo principal, que é obter um lugar permanente no Conselho de Segurança, a política externa colocou-se a serviço dos interesses de Washington, não só assumindo os encargos políticos e militares da pacificação do Haiti, como se prestando ao papel de elemento moderador das estripulias autoritárias do coronel Hugo Chávez. Assim, colocou-se o Brasil em esplêndido isolamento no continente que o Itamaraty pretende liderar, traduzido na fragorosa derrota na eleição do diretor-geral da OMC e na aberta oposição que os principais países da região fazem à candidatura brasileira ao lugar permanente no Conselho de Segurança.