Título: Uma figura deplorável
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/05/2005, Editoriais, p. A3

O presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, não é uma figura "hilária", "gozadíssima" ou "muito divertida", como disseram, irrefletidamente talvez, membros da platéia que acompanhou a sabatina a que ele foi submetido, na segunda-feira, pela Folha de S.Paulo. Tampouco é o que a imprensa costuma considerar um personagem "folclórico" e por isso pede as suas opiniões a todo instante, para o presumível entretenimento dos leitores.

Self-made man como milhões de migrantes nordestinos que trabalharam duro e se deram bem no Sul, Severino Cavalcanti tornou-se um político profissional na sua terra, escolado nas práticas mais retrógradas e desmoralizantes da política nacional, a começar do clientelismo, que ainda hoje viceja até mesmo nos centros de decisão da capital federal, e tem mais significado prático do que os conceitos de esquerda ou direita.

O severinismo é uma forma de conseguir e conservar poder por meios que repugnam as coletividades modernas, em qualquer parte do mundo e quaisquer que sejam as suas variadas convicções sobre os temas de que se ocupam os legisladores e os governantes - do que fez prova no último domingo o milhão de populares que vaiaram o parlamentar e lhe mostraram insistentemente o polegar para baixo, numa comemoração do 1.º de Maio nesta cidade.

Aos estratagemas graças aos quais ascendeu na política, engatinhando sob a ditadura militar e depois transitando de um partido a outro sem jamais perder de vista os seus objetivos e interesses próprios, adicione-se a sua condição de portador de idéias teratológicas, que, por um "acidente horrendo", para usar a sua definição de estupro, se tornou o terceiro hierarca da República - a um par de batimentos cardíacos, como se diz, do Palácio do Planalto.

Unha e carne de Paulo Maluf, o do "estupra, mas não mata", condena, em caso de violência sexual, o direito ao aborto que a lei brasileira permite desde 1940. Compartilha com o ex-prefeito a idéia, se é que a palavra é essa, da inexistência de barreiras entre o público e o privado. Falando de uma de suas notórias especialidades, o nepotismo, perguntou, retoricamente: "Se pode fazer isso em empresas privadas, por que não pode fazer em órgãos públicos?"

Do mesmo modo, ele critica acerbamente a separação entre Igreja e Estado, instituída no Brasil pela Constituição republicana de 1891. Nisso, ele tem o discutível privilégio de comungar com alguns dos piores extremistas da política americana, como o também nepotista Tom DeLay, líder do governo na Câmara dos Representantes (que gostaria de destituir juízes "liberais") e, antes dele, o espalhafatoso presidente da mesma Casa nos anos 1990, Newt Gingrich.

Não está em questão, obviamente, o direito do deputado de pensar e dizer o que quiser. Mas, além de suas crenças ultramontanas e dos trancos que as suas palavras obrigam a lógica a padecer, é deplorável a grosseria com que a toda hora se exprime, mais encontradiça nos botequins onde costuma socorrer vítimas de excessos etílicos do que no Congresso Nacional ou em entrevistas de autoridades à imprensa. Anteontem, ele tornou a dar exemplos desse primarismo que este espaço prefere não reproduzir.

Do ângulo das questões de governo que afetam o País, chama a atenção o tratamento morde-e-assopra que ele reserva ao presidente Lula desde que este - como não poderia deixar de fazer para preservar a autoridade - se recusou a levar para o Ministério um protegido de Severino cuja nomeação o deputado exigira em público. Ora diz que Lula é cópia de Fernando Henrique, ora promete ser "um bom menino" se o governo permitir que o Congresso trabalhe.

Enquanto isso, constrange o temor reverencial com que o presidente da República trata o homólogo da Câmara. Depois de admitir que a eleição de Severino representou um dos três maiores erros de seu mandato, Lula o chamou de "companheiro" e atribuiu ao "debate interno da Câmara" (que não houve) a sua vitória - para a qual o auxílio do Planalto, por incompetência e desídia, é impossível minimizar.

Na verdade, Lula está inseguro diante de Severino: não sabe se e como conseguirá transformá-lo em "bom menino". Mesmo fazendo uso dos tradicionais argumentos aos quais o rei do baixo clero é especialmente sensível - e que o governo aprendeu a manejar tão bem quanto ele.