Título: Caos, sem discordância
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2005, Editorial, p. A3

O espetáculo da invasão da sede do Ministério da Fazenda, em Brasília, por um estrepitoso bando de militantes do autodenominado Movimento de Libertação dos Sem-Terra (MLST) - não importando se foram 1.200 invasores, como disseram os líderes do movimento, ou 500, como calculou a polícia - pode não ter sido inédito, porque manifestações de acintoso desrespeito às autoridades, dessa espécie, têm sido freqüentes nas operações dos chamados "movimentos sociais". Mas sem dúvida pelo sentido simbólico - o da ocupação do Ministério e do gabinete de trabalho do ministro mais importante do governo -, pela forma como os invasores preencheram todos os espaços do prédio, colorindo os ambientes com seus bonés vermelhos, com os quais chegaram a brincar com o retrato do presidente da República, imitando a colocação, que fizera Lula, do boné do "rival" MST, e, enfim, pela absoluta tranqüilidade com que permaneceram 6 horas nessa ocupação, acrescidas de mais 2 horas de negociação para sair do prédio, tal manifestação representou a mais explícita e deslavada demonstração de desmoralização da autoridade pública, que se poderia imaginar em nosso país - espetáculo deprimente, estampado, como não poderia deixar de estar, nas primeiras páginas dos jornais e em todos os telejornais, com a péssima repercussão internacional que, certamente, há de provocar. O alvo principal dos invasores, logo atingido, foi o gabinete do ministro Antonio Palocci, no 5.º andar do edifício - que por sorte estava ausente do local -, a pretexto de reivindicarem a liberação de verbas "cortadas" para a reforma agrária e de pleitearem a anistia para débitos de assentados. No 4.º andar, onde fica o gabinete do secretário-executivo do Ministério, Bernard Appy, os funcionários conseguiram reagir de maneira mais organizada, montando barricadas para impedir a entrada dos invasores. Mas estes deixaram todo o prédio imundo, com papéis jogados, garrafas vazias e restos de comida espalhados por todos os cantos. E só saíram depois de terem obtido a promessa formal de audiências com o presidente Lula, com o ministro da Fazenda (que acabavam de ter chamado de "ladrão") e com o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto.

É claro que quanto à audiência com o ministro Rossetto - único que mereceu rasgados elogios dos invasores do prédio governamental - os manifestantes não precisariam de esforço algum para marcá-la, visto que ele tem se adiantado em desmedidas pressões para obter mais recursos para a reforma agrária - com o que tem provocado divergências e impasses na equipe ministerial, confrontando-se tanto com o ministro Palocci quanto com o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, ao tentar lhes impor (e a todos os produtores rurais brasileiros) uma imediata mudança de critério de avaliação dos índices de produtividade no campo, tendo em vista aumentar o estoque de áreas disponíveis para a reforma agrária.

A propósito dessa atualização de índices da qual o ministro Rossetto não abre mão - mesmo que o ministro Rodrigues se mostre com a melhor boa vontade para negociação - é bom lembrar que a ampliação dos índices de "improdutividade" se destina a trocar os empresários rurais mais produtivos do mundo por assentamentos dos sem-terra, que neles poderão permanecer indefinidamente sem se preocupar com índices de produtividade. Trata-se de fazer com as mais produtivas fazendas do mundo o que foi feito com a Fazenda Itamaraty, do grande produtor Olacyr de Moraes, retalhada entre os lavradores do Movimento dos Sem-Terra (MST). De fazenda modelo, com altos índices de produtividade, transformou-se em um fracassado projeto cooperativo, de baixíssima produtividade.

Na página do jornal vizinha à que exibia o deprimente espetáculo da invasão do Ministério da Fazenda aparecia seu titular, o ministro Antonio Palocci, participando de um seminário em que dizia, com toda razão, que o "agro é o melhor negócio brasileiro" e que "somos, talvez, uma das últimas fronteiras agrícolas do mundo". Em outra matéria da página, o Ministério de Rossetto fincava pé nos novos índices. Numa terceira, o ministro Roberto Rodrigues se esforçava para tapar o sol com peneira, dizendo que não há discordância no governo. De fato, o quadro estampado nos jornais de ontem, mais do que de discordância, era de caos.