Título: Idealizador da norma cobra conselho de gestão
Autor: Martus Tavares
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/05/2005, Nacional, p. A11

Para o ex-ministro Martus Tavares, governo Lula "brincou com fogo" ao editar medida provisória que beneficiou Marta

Mariana Caetano - Ex-ministro do Planejamento no governo Fernando Henrique Cardoso, hoje à frente da mesma pasta no Estado de São Paulo, Martus Tavares é um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal. Seu balanço sobre a aplicação da lei até aqui é positivo, mas ele alerta que o governo federal emite sinais contraditórios a respeito de seu real comprometimento com os princípios de austeridade e transparência. Exemplo disso é o tratamento privilegiado dedicado à ex-prefeita Marta Suplicy (PT) - com a edição de uma medida provisória para regularizar o repasse de verba do Programa de Refinanciamento de Iluminação Pública (Reluz) - e a falta de empenho na criação do Conselho de Gestão Fiscal. O conselho deverá padronizar os critérios utilizados pelos Tribunais de Contas e fechar algumas brechas por onde escapam de punição administradores irresponsáveis.

São 5 anos da Lei Fiscal. É mais para comemorar ou para se preocupar?

Para comemorar, sem dúvida. Mas não é para comemorar e ficar tranqüilo em casa, como se a coisa estivesse consolidada. Temos um trabalho diário de vigilância. A mídia, que teve um papel excepcional no processo de aprovação da Lei Fiscal no Congresso, vai ter de continuar cumprindo essa missão de apoio à sociedade, de acompanhar o que cada agente público está fazendo e denunciar, para que os órgãos de controle apurem. Estamos consolidando no País uma nova cultura político-administrativa, na qual os governantes têm, cada vez mais, de assumir comportamentos de responsabilidade em relação aos recursos que administram. O contribuinte é permanente, cada governo é passageiro.

Como nasceu a idéia da Lei?

A história começa em 1988, com o capítulo sobre finanças públicas da Constituição, que estabelecia uma série de normas novas na matéria de planejamento, orçamento e finanças. Um dispositivo incluído pelo então deputado José Serra, que era o relator desse capítulo, exigia que fosse aprovada uma lei complementar de finanças públicas para os três níveis de governo. Ele acabou sendo a base constitucional da Lei Fiscal. Em 1998, ela não tinha sido regulamentada. Aí explodiu a crise da Rússia e o Brasil passou a ser a bola da vez. Revisamos o orçamento de 1999, que já tinha ido para o Congresso e optamos por dar uma resposta mais firme na política fiscal. O Brasil precisava aumentar sua poupança, fazendo superávit primário. Decidimos buscar um superávit em torno de 3% do PIB. Era o começo de uma resposta. Defendi que tínhamos de buscar respostas institucionais, porque a resposta quantitativa não nos daria sustentabilidade.

A Lei Fiscal hoje é aceita pela sociedade?

A sociedade brasileira vem exigindo, ao longo dos últimos anos, cada vez mais responsabilidade dos seus governantes e não aceita mais o modelo de comportamento típico dos políticos antigos. Nós tivemos um exemplo recente com a medida provisória 232. A sociedade rejeitou, disse 'chega!' Ainda há certa incompreensão. As pessoas acham que não têm nada a ver com o orçamento do governo. Quando se fala de aumentar impostos, a reação da população é mais imediata, mas quando se fala de despesas, as pessoas não percebem que diz respeito a elas.

O povo não faz relação de causa e efeito de que é ele quem paga a conta...

Uma coisa que ainda não se alastrou pela sociedade é a convicção de que quem paga a conta é sempre o cidadão. Serra assumiu a Prefeitura de São Paulo e encontrou as finanças destroçadas. A situação é de calamidade. As pessoas tendem a dizer: 'coitado do Serra'. Ora, coitado do Serra, não. Coitado dos contribuintes paulistanos, porque eles é que vão ser chamados a pagar a conta ou a enfrentar restrições na prestação de serviços. O contribuinte tem de saber que é ele que paga a conta de um gestor irresponsável. A gente precisa traduzir esse nexo causal para o cidadão. Não é só quando se fala de imposto que o problema é do cidadão.

De que forma a Lei Fiscal tem ajudado o cidadão a fazer esse reconhecimento?

Tem algumas coisas que a sociedade já captou de uma forma mais precisa. Por exemplo, a questão do limite das despesas de pessoal. Antes da lei, os governadores diziam que eram gerentes de recursos humanos. A arrecadação ia toda para pagar pessoal. Hoje, praticamente todos os Estados e municípios estão enquadrados. Isso representa uma mudança que a sociedade percebeu. Mas a questão das dívidas deixadas ainda não está clara para a sociedade, fica parecendo uma briga de sucessor com antecessor.

A Lei Fiscal pegou?

É claro que a lei pegou. Se temos no País mais de cinco mil municípios e apenas uma centena não cumpriu integralmente a lei, só podemos celebrar. A lei cumpriu a sua tarefa. Hoje todos os governantes têm de mandar para suas casas legislativas um projeto de lei com um anexo de metas fiscais, onde são listados os resultados fiscais esperados. Isso é uma mudança radical na forma de administrar.

O atual governo tem convicção sobre a Lei Fiscal?

Não tenho nenhuma dúvida de que, se não existisse a Lei Fiscal, o presidente Lula teria refinanciado, mais uma vez, as dívidas das prefeituras amigas... Ele não fez porque a lei proíbe. Antes da lei, a cada quatro anos os governadores eleitos faziam uma revoada a Brasília para pedir refinanciamento. A gente sempre dava dois anos de carência. Quando iam se completar os dois anos, repetia-se a choradeira. Todo mundo voltava a Brasília, pressionava o governo, que acabava aumentando a carência em mais um ano. No final do ano, mais uma viagem, mais uma carência e aí acabava o mandato. Essa era uma história perversa. Agora, acabou.

Mas sempre tem alguém querendo pular a cerca...

Todo dia tem gente testando a lei. Temos que manter a vigilância.

Mas o sistema de punições não tem sido eficaz, tem?

Quem tem a atribuição de fiscalizar são as casas legislativas, apoiadas pelos tribunais de contas. A mídia e a sociedade controlam tudo isso, fazem esse monitoramento. Criamos um sistema de punição moderno, que dá condições e meios para que a própria sociedade exerça o controle. Na época em que fizemos a lei, as pessoas entendiam que só a ameaça de punição penal seria capaz de fazer cumprir a lei. Acredito na punição eleitoral, que é muito mais dura. Protelar um processo na Justiça é muito fácil.

Como o sr. avalia a medida provisória 237, editada num contexto que beneficiou a ex-prefeita Marta Suplicy?

O governo federal brincou com fogo quando editou a medida provisória do Reluz. Fazer esse tipo de concessão é um absurdo. Na verdade, a MP não poderia retroagir para legalizar um ato que é ilegal porque não atendia à Lei Fiscal. Nunca vi isso na minha vida. Trata-se de uma questão que é de competência privativa do Senado. MP diz respeito ao Congresso, não pode mudar uma resolução do Senado. Está errado, também, do ponto de vista jurídico, retroagir para regularizar. E, depois, regularizar pelo instrumento errado: a Lei Fiscal é uma lei complementar e uma medida provisória é uma lei ordinária. Uma lei ordinária não muda uma lei complementar.

O sr. identifica vontade política do atual governo para dar cumprimento à Lei Fiscal e estimular a cultura da responsabilidade?

Sim e não. Em alguns casos, existem sinais contraditórios. A questão da medida provisória 237 é, como eu disse, brincar com fogo. Se a gente conhece a importância da responsabilidade fiscal para a estabilidade macroeconômica, o crescimento e a atração de investimentos, e faz aquilo, parece que está facilitando. Por outro lado, o governo tem cumprido as metas fiscais e tem sido responsável, do ponto de vista macroeconômico. Mas quando diz respeito à questão da institucionalidade, aí eu tenho receios, como no caso dessa medida provisória. Ela vem como se atentasse contra essa institucionalidade. Outra coisa que deixa a desejar é o governo não brigar para aprovar as medidas que faltam para completar a Lei Fiscal.

O que falta para completar a lei?

Pouco antes do final do governo FHC, enviamos ao Congresso o projeto de lei que cria o Conselho de Gestão Fiscal. Não conseguimos aprovar porque a oposição da época criou uma série de obstáculos. O Conselho é fundamental para expandir a ação da Lei. Está previsto que ele deve ser formado pelo Congresso Nacional, governo federal, Estados, municípios e representantes da sociedade civil. Ele vai emitir resoluções, padronizando a contabilidade e as estatísticas, e também avaliar os relatórios de gestão fiscal e dirimir as questões omissas da lei. O projeto está parado no Congresso há mais de dois anos. É um passo que o governo federal poderia ter dado, porque tem maioria no Congresso.

O sr. faria alguma mudança no texto da Lei?

Só uma: eu colocaria no texto da lei, bem claramente, que cancelamento de empenho liquidado é crime. Tipificar esse crime, para poder aplicar a penalidade direto. Porque assim sanaríamos todas as dúvidas.

O sr. acha que na prática a Lei Fiscal ajudou a atrair investimentos?

A Lei Fiscal foi importantíssima para o processo de estabilização da economia, para a recuperação da credibilidade e, hoje em dia, nos sinais que emite aos investidores. Hoje, uma lei ou gestão fiscal responsável significam um atrativo para os investidores. Ninguém aposta um investimento novo num Estado mal gerido.