Título: Retórica itamaratyana
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/04/2005, Editoriais, p. A3

Mais uma vez o tratamento excessivamente leniente que o Itamaraty tem dispensado à ditadura de Fidel Castro mostrou ao mundo a hipocrisia de que os atuais responsáveis por nossa política externa são capazes, em matéria de garantias fundamentais. Ao justificar a decisão de se abster na votação de uma resolução apresentada pelos Estados Unidos e co-patrocinada pela União Européia na Comissão de Direitos Humanos da ONU, pedindo a elaboração de um amplo relatório sobre a atual situação das liberdades públicas em Cuba, a delegação brasileira, seguindo explícitas instruções da chancelaria, alegou que, em face do "caráter altamente político" do caso, não tomaria partido, abstendo-se. A moção foi aprovada na quinta-feira por 27 votos a 17, com 15 abstenções.

Essa justificativa é contraditória, uma vez que a ONU é um foro eminentemente político e toda decisão relativa à violação dos mais elementares direitos inerentes à dignidade da condição humana não pode ter qualquer outra dimensão, a não ser política. Por isso, a nota à imprensa distribuída pelo Itamaraty para explicar a decisão de se abster nesse caso - acompanhando, entre outros, países com estruturas feudais e regimes fechados, como Paquistão, Butão, Burkina Fasso, Togo, Gabão, Sri Lanka e Suazilândia - é um primor de contorcionismo retórico.

Um de seus parágrafos enfatiza "o irrestrito respeito" do País aos princípios democráticos, ao Estado de Direito e às liberdades fundamentais, ao sistema universal de proteção dos direitos humanos e ao papel da própria ONU na promoção das garantias fundamentais. Outro parágrafo, contudo, afirma que esse respeito não é assim tão "irrestrito", pois a mesma entidade antes elogiada estaria, segundo a nota, sendo utilizada "por alguns países membros para criticar outros ou evitar críticas a suas próprias situações, o que reduz a contribuição que esta Comissão pode dar para o desenvolvimento progressivo dos direitos humanos".

Ora, não foi para permitir esse tipo de crítica que a ONU criou esse importante órgão? E, se o Brasil é signatário da Declaração de Viena, que foi assinada em 1993 para reafirmar a universalidade, a interdependência e a indivisibilidade dos direitos humanos, conforme salienta a nota do Itamaraty, de que modo defender o respeito a esses princípios sem qualquer crítica às nações que os violam sistematicamente há mais de 40 anos, como é o caso de Cuba? Ou será que os atuais responsáveis por nossa política externa acreditam, de fato, que o "contínuo diálogo com o governo cubano" por eles tão enfatizado poderá, após esse longo período, apresentar num horizonte próximo resultados dignos de nota?

Mas mais graves do que o contorcionismo retórico do Itamaraty, nesse episódio, são os efeitos de sua política contemporizadora com as atrocidades cometidas pelo regime castrista. Além de ordenar o fuzilamento de muitos de seus críticos, sem lhes assegurar amplo direito de defesa e julgamento isento, nos últimos tempos Fidel multiplicou o número de jornalistas, intelectuais e dissidentes trancafiados nos porões de sua ditadura. Desde então, pressionado pela comunidade internacional, ele libertou alguns desses presos, o que tem sido interpretado pelo Itamaraty como uma "observância", por parte de Cuba, aos princípios da Declaração de Viena. Tanto que, em sua nota, a chancelaria brasileira classifica essas libertações como "avanços (...) no campo dos direitos econômicos, sociais e culturais".

Evidentemente, trata-se de um flagrante exagero. E é justamente aí que está o efeito nefasto a que nos referimos. Ao elogiar a soltura de alguns poucos dissidentes, quando a maioria permanece encarcerada e submetida a condições degradantes, a política de contemporização do Itamaraty apenas estimula a jurássica ditadura cubana a continuar prendendo opositores aos magotes, para libertá-los a conta-gotas, pretendendo iludir, desse modo, a comunidade internacional.