Título: 3.º Mundo periférico ou emergente?
Autor: Gilles Lapouge
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/04/2005, Internacional, p. A16

É preciso investigar com cuidado o que há para comemorar no 50º aniversário da Conferência de Bandung, a celebrar-se sexta-feira e sábado na Indonésia. Uma abordagem esclarecedora é analisar em que circunstâncias os antônimos "centro-periferia" ou "desenvolvidos-subdesenvolvidos" - utilizados para designar países ricos e pobres - foram sendo substituídos por "primeiro-segundo-terceiro mundos" e, em seguida, por um conceito forçadamente dinâmico de "em desenvolvimento" ou "emergentes" para designar a melhor parte dos países pobres. Terminado o último grande conflito mundial, a bipolaridade decorrente da confrontação ideológica EUA-URSS convivia com pressões para a descolonização e radicalizava-se a oposição entre os países chamados "desenvolvidos" e os "subdesenvolvidos", especialmente nas amplas regiões do mundo não atingidas pelo Plano Marshall. No continente americano, a grande preocupação da 4.ª Reunião de Consulta da Organização dos Estados Americanos, no início de 1951, era com a anunciada agressividade expansionista do comunismo internacional. Esse clima de apreensão induziu os EUA a um plano de mobilização econômica na América Latina. No caso do Brasil, o governo Vargas aproveitou-se das tensões e conseguiu recursos americanos para hidrelétricas, refinarias de petróleo e ampliação da siderúrgica de Volta Redonda. O fim dos anos 50 havia sido marcado pelo discurso nacionalista, o antiamericanismo e a denúncia do imperialismo. O lançamento da Operação Pan Americana, em 1958, no início do período Kubitschek, tinha como apelo vencer o subdesenvolvimento. As reivindicações eram a necessidade de receber capitais e tecnologia e evitar a deterioração dos termos de troca no comércio internacional. Os resultados objetivos da OPA foram o BID, a Alalc, a Aliança para o Progresso, lançada por Kennedy. A Aliança para o Progresso (início de 1961) surgiu como clara reação à passagem de Cuba para o bloco socialista. Com a posse de Jânio Quadros, em janeiro de 1961, veio sua Política Externa Independente, depois continuada em outros termos por João Goulart. O perigo do comunismo - e o flerte com ele - foi intensamente utilizado como instrumento de pressão para vantagens e concessões, procurando apoio para um plano nacional de desenvolvimento. Já com Goulart, enquanto eram restabelecidas relações com a URSS (interrompidas desde outubro de 47), o chanceler Araújo Castro defendia na ONU a promoção ao desenvolvimento e apontava crescentes desníveis de riqueza entre desenvolvidos e subdesenvolvidos. São desse período as teses da Cepal sobre "insuficiência dinâmica" e "tendência à estagnação", além da defesa da reforma agrária e da idéia de dependência tecnológica. A periferia, segundo Celso Furtado e Raul Prebisch, estaria utilizando tecnologia gerada pelo "centro" e seu emprego estaria sobreutilizando o recurso escasso "capital", em detrimento do recurso abundante "mão-de-obra". É quando Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto escrevem Dependência e desenvolvimento na América Latina. Aníbal Pinto também achava que a industrialização não eliminava a dependência, apenas modificava seu formato, sendo o subdesenvolvimento um processo que tendia a perpetuar-se, com uma crescente elevação da vulnerabilidade externa. Há indícios, pois, que na década de 1960, ao afirmar conceitos e iniciar barganhas para obter ajudas ao desenvolvimento - que a confrontação ideológica permitia e incentivava -, os países subdesenvolvidos fizeram germinar uma tentativa, a partir da periferia, de induzir em nível sistêmico um direito de crescer e desenvolver.

No início dos anos 70 a confrontação Leste-Oeste deu lugar a uma distensão no plano internacional, que foi batizada de détente. Henry Kissinger dominava então a cena com sua realpolitik, defendendo que a paz surgiria de um sistema de equilíbrio, ainda que no terror nuclear. O apogeu dessa doutrina foi o encontro Nixon-Brejnev em 1973. Interpretando essa aproximação como um conluio entre EUA e URSS, ainda antes da queda de Kruchev a China havia rompido com a URSS. Em 1974, Deng Xiaoping expõe na ONU a "teoria dos três mundos", concitando os países da periferia a se associarem às nações desenvolvidas intermediárias para erradicar a hegemonia e a dominação das duas grandes potências. O fim da descolonização da África já havia completado mais de dez anos. O Terceiro Mundo tentava irromper com uma terceira força, hesitando entre o neutralismo pacifista de Nehru (Índia) e o neutralismo positivo de Nasser (Egito). Já no final da década de 70, durante a gestão Carter, com a derrota no Vietnã, a détente começa a definhar e as prioridades da relação Leste-Oeste concentram-se em evitar a proliferação nuclear. A questão Norte-Sul vai ressurgindo e os EUA incluem o Tterceiro Mundo na agenda.

Na verdade o movimento dos não-alinhados, surgido após a libertação das colônias, com contornos mais ou menos amplos, manteve-se como um pano de fundo do cenário internacional durante as décadas de 60, 70 e 80: instituiu fóruns na ONU; manteve negociações procurando deslocar o confronto Leste-Oeste para o diálogo Norte-Sul; introduziu o discurso por uma Nova Ordem Econômica Internacional; fez pressões por um comércio igualitário e por autonomia relativa (Grupo dos 77, visando à cooperação Sul-Sul). De concreto, conseguiu apenas poucas vitórias: o Sistema Geral de Preferências acrescido ao estatuto do Gatt, permitindo alguma proteção às indústrias incipientes; a criação da Unctad; e o estabelecimento de um comitê no FMI voltado para problemas de desenvolvimento.

A partir de 1980, no entanto, com o avanço da globalização, diminuiu sensivelmente a capacidade geral dos países mais pobres de influir no sistema internacional. À queda fulminante da bipolaridade com o colapso do bloco soviético seguiu-se a ampliação dos mercados ao leste, a consolidação da hegemonia americana e a expansão do capitalismo global calcado nas cadeias produtivas globais e nas tecnologias da informação. Esse período, inaugurado sob um novo e afirmativo discurso hegemônico, dava ênfase à abertura econômica, ao Estado mínimo, privatizações e ortodoxia monetária como garantias de um novo porvir. Um clima de exaltação ideológica fazia predominar a ortodoxia liberal, batizada por Williamson como o "consenso de Washington" devido ao patrocínio do FMI, do Banco Mundial e do Departamento de Estado dos EUA. Fukuyama falava no fim da História - entendida como fim da era dos conflitos - com um feliz porvir garantido a todos pelos mercados livres. Peter Drucker via as grandes corporações transnacionais dominando os mercados de trabalho mundiais, garantindo bons salários e proteção social a todos. E recomendava aos Estados nacionais - considerados supérfluos e inúteis - que batessem em retirada. A garantia desse novo discurso hegemônico, uma verdadeira divisa religiosa do tipo "abram seus mercados, privatizem e estabilizem que tudo mais lhes será dado por acréscimo", era de que a aplicação das medidas ortodoxas por uma dezena de anos faria os "grandes países da periferia" superarem suas limitações e voltarem definitivamente a crescer num mundo harmônico e sem conflitos, regido pelo capitalismo global. Essa época reforçou discursos politicamente corretos, o que deve estar na origem da abolição dos termos "periferia", "subdesenvolvidos" ou "Terceiro Mundo", todos eles varridos da linguagem oficial internacional por serem contraditórios com as amplas perspectivas que se julgava iriam se abrir aos países que esses termos até então designavam. Parece ter sido, pois, a segunda metade da década de 1980 - parteira do triunfante discurso hegemônico neoliberal - aquela que afirmou a nomenclatura otimista de países "em desenvolvimento" ou "emergentes" para designar uma nova fase dinâmica de expansão econômica da periferia.

Hoje os resultados dessa ilusão são claros. Os 116 chamados "países em desenvolvimento", que haviam conseguido um crescimento médio do PIB per capita de 3,1% entre 1960 e 1980, sob a lógica global e as políticas neoliberais de 1980 a 2000 recuaram para apenas 1,4%. Portanto - com a exceção notável de China, Índia e Coréia - nem se desenvolveram, nem emergiram. Continuam a merecer, infelizmente, a condição de periféricos. Pouco, pois, a comemorar.