Título: Em foco, o descompasso entre Igreja e ciência
Autor: Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/04/2005, Vida&, p. A22

Logo após a morte de João Paulo II, o arcebispo de São Paulo, d. Cláudio Hummes, disse o que é esperado do próximo papa: entre recados sobre o fortalecimento da fé cristã, ele pregou a abertura de diálogo com os cientistas, especialmente com os biotecnólogos. Biotecnologia é o uso de processos biológicos para desenvolver produtos como terapias. A definição pode parecer distante do público leigo, mas não a prática: mesmo que ainda exista certa confusão sobre detalhes, clonagem, pesquisas com células-tronco e alimentos transgênicos fazem parte de conversas corriqueiras.

A posição de d. Cláudio - considerado um possível sucessor de João Paulo II - demonstra pelo menos uma mudança na forma como a Igreja encara a ciência. Na história milenar da Santa Sé, existem diversos casos de descompasso entre a evolução científica e a dogmática.Agora, aparentemente, o Vaticano quer se aproximar do rápido compasso do mundo moderno.

"A Igreja precisa estar atenta. A sociedade hoje muda de forma muito rápida", diz o pesquisador Silvio Eduardo Duailibi, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "A Igreja deve acompanhar a evolução do seu tempo." Segundo ele, hoje o questionamento é muito mais intenso e ambos os lados - cientistas e religiosos - sentem a pressão pela busca por informações. A geneticista Lygia da Veiga Pereira, da Universidade de São Paulo, concorda: "A demanda parte da própria sociedade católica, (portanto) a Igreja precisa ter mais agilidade do que no caso de Galileu."

O italiano Galileu Galilei (1564-1642) é o exemplo mais célebre da diferença entre os dois discursos. Ele foi execrado pela Igreja ao defender que a Terra gira em torno do Sol (teoria heliocêntrica), e não o contrário. Só em 1893, durante o papado de Leão XIII, o modelo foi aceito definitivamente pelo Vaticano e, em 1992, João Paulo II admitiu a injustiça.

SOB O MICROSCÓPIO

No pontificado de Karol Wojtyla, o Vaticano viu florescer um fértil campo chamado biologia molecular, que por sua vez trouxe à tona conceitos como genômica (o estudo dos genes) e proteômica (das proteínas). Poucas vezes na história da medicina o conhecimento científico provocou tanta esperança de surgimento de tratamentos - sem passar de mera expectativa em muitos casos, como no caso da terapia genética, que até hoje não se provou segura suficientemente para ser aplicada em larga escala.

Os passos dados neste campo têm sido cada vez mais largos e a reação da Igreja Católica, especialmente quando contrária, cada vez mais rápida. Para Lygia, ela é esperada e bem-vinda. "O contraponto oferecido pela Igreja tem sim seu valor para estimular o debate. O que não ele pode ser é dogmático e ter poder de lei", afirma.

Um caso recente no Brasil foi a aprovação da Lei de Biossegurança neste ano, que regulou o uso de células-tronco embrionárias - células que têm a capacidade virtual de se diferenciarem em qualquer tipo de tecido do corpo. O processo exige a destruição de um embrião em estágio inicial. Para a Igreja Católica, a vida começa no momento da concepção, ou seja, quando o espermatozóide fertiliza um óvulo; portanto, o ato é considerado assassinato.

A Igreja, representada na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), posicionou-se contra ainda durante a discussão do projeto de lei, exercendo influência na bancada católica do Congresso Nacional. "(A Igreja) parte do pressuposto que o embrião humano já é um ser humano e, como tal, não pode ser 'usado' para a pesquisa científica", afirma d. Odilo Pedro Scherer, secretário-geral da CNBB. "A vida humana não é um bem disponível."

SOPRO DE DEUS

A discussão que acompanhou a aprovação da lei reflete um dos debates que o próximo papa pode enfrentar: o conceito de vida. Para alguns cientistas, é preciso estabelecer critérios precisos sobre a questão, assim como eles existem para a morte.

Além disso, a geneticista da USP acredita que cientistas e eclesiásticos terão de discutir não apenas quando a vida começa, "mas até que ponto é aceitável interferir".

Para a bióloga molecular da Unifesp Alice Teixeira, conselheira científica da CNBB, o problema existe quando o ser humano é usado como objeto de pesquisa. "A preocupação fundamental da Igreja é a defesa do ser humano." O mesmo diz d. Odilo, que defende uma orientação da ciência sob critérios éticos, sem que seja feita "mediante o sacrifício de vidas humanas".

Há lenha para ser queimada nesta discussão, e tanto a ciência quanto a Igreja esperam que o debate exista. Como lembra Duailibi, "o ponto de equilíbrio é fundamental para a sociedade".