Título: 'Igreja deve renunciar à arrogância'
Autor: Luciana Nunes Leal
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/04/2005, Vida&, p. A26

Os milhões de admiradores que se comoveram com a morte de João Paulo II choram o desaparecimento de um papa aberto ao diálogo, que fazia lembrar um pai benevolente. A outra face do papa foi a de líder duro e irredutível na defesa das rigorosas regras católicas. Os dois perfis de João Paulo II são analisados pelo teólogo e escritor Leonardo Boff, de 66 anos, principal teórico da Teologia da Libertação no Brasil, que travou uma longa batalha com a Igreja Católica durante duas décadas. Punido com "silêncio obsequioso" em 1985, ele desligou-se da Igreja em 1992. Boff cita os rigores de João Paulo II, aponta limitações em relação à reflexão doutrinária, mas também lembra que, graças ao papa, teve a punição de silêncio reduzida. Sobre o cardeal alemão Joseph Ratzinger, presidente da Congregação para a Doutrina da Fé e um dos mais influentes auxiliares de João Paulo II, Boff diz que é um dos cardeais mais "odiados" da Igreja e duvida que possa se tornar papa.

O teólogo defende o fim da obrigatoriedade do celibato e o ingresso das mulheres no sacerdócio. Boff diz não ter planos de deixar a condição de leigo e ironiza: "O Vaticano teria preferido que eu fosse tudo menos teólogo. Melhor seria fazer-me subdiretor da Coca-Cola do Rio."

Como o senhor resumiria o papado de João Paulo II?

O papado foi a figura do papa mesmo, pastor e profeta. Como pastor, era aberto e buscava o diálogo com todos, comparecendo como uma figura de pai benevolente com características de mãe. Esse papa é que está sendo chorado, como se chora a perda de um ente querido. Como profeta, homem da palavra escrita e falada e mais ainda dos gestos simbólicos, surge como duro e inflexível em seu ensinamento. Poucos escutavam sua mensagem, fora do tempo, mas captavam a mensagem que era sua figura carismática com habilidade de dramatização midiática de um grande artista. Essa figura permanecerá na memória da humanidade do início do novo milênio.

Para a Teologia da Libertação, foi o pior momento?

Com referência à Teologia da Libertação, teve duas atitudes e em dois momentos diferentes. Enquanto existia o socialismo real e o marxismo, João Paulo II era totalmente contra esse tipo de teologia porque, na interpretação dele, poderia servir de cavalo de Tróia na penetração do comunismo na América Latina, comunismo de versão stalinista que ele conheceu em seu país. Condenou-a pensando fazer um ato de amor e de proteção ao povo. Aqui há um equívoco: o perigo na América Latina nunca foi o comunismo, mas sempre foi o capitalismo selvagem e as elites sem qualquer sensibilidade social.

Com o fim do comunismo, o que mudou?

Depois que o regime soviético caiu, ele pôde constatar a devastação moral e humana que o capitalismo trouxe aos países do leste europeu, especialmente à Polônia. Deu-se conta dos valores morais que o socialismo mantinha, no sentido do bem comum, da solidariedade e da moralidade pública. O marxismo já não era perigo para América Latina. Foi então, em 1991, que ele escreveu uma carta à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), na qual dizia que a Teologia da Libertação "não é somente útil, mas necessária" na superação das injustiças sociais. E deixou os teólogos em paz.

O senhor sofreu duras punições durante o período de João Paulo II. Em algum momento o senhor se ressentiu da atitude pessoal do papa ou sempre achou que ele foi levado a tomar as decisões e não tinha noção exata das punições?

O papa chegou a ler livros meus. Uma vez que o encontrei, apresentado pelo cardeal Joseph Ratzinger , e ele me disse: "Estou lendo um livro de você, devagar, devagar". Estava treinando seu português porque viria ao Brasil. Certa feita, o papa comentou com um dos bispos amigos: "O Boff com sua teologia nunca me decepcionou". E quando eu devia ser sumariamente cassado como teólogo católico, ele perguntou ao cardeal Ratzinger, que apresentava o texto da condenação: "Conversou já com o teólogo Boff?" Como o cardeal respondeu que não, então o papa retrucou: "Chame-o a Roma e converse com ele". De toda as formas tive de sentar na mesma cadeirinha onde sentaram Galileo Galilei e Giordano Bruno e outros companheiros de tribulações mais notáveis que eu. Quando fui punido com um tempo indeterminado de "silêncio obsequioso", foi o papa quem o abreviou para não parecer que agia como os militares brasileiros que impunham silêncio aos jornalistas. Comigo ele foi antes pastor que profeta.

Ratzinger é o maior adversário da Teologia da Libertação?

Ratzinger é um dos cardeais da Cúria mais odiados pela Igreja (Católica) universal. Por sua rigidez e porque humilhou conferências de bispos e colegas cardeais pela forma autoritária como sempre tratou as questões de fé.

O que significaria, para a Igreja Católica e para a Teologia da Libertação, a escolha do Ratzinger como novo papa?

Estimo que jamais será papa, pois seria um excesso do mesmo, coisa que a inteligência dos cardeais não permitiria.

No campo teológico, dogmático, que avaliação o senhor faz do pontificado de João Paulo II?

No campo teológico, este João Paulo II foi conservador. Manteve a doutrina e não era afeito à reflexão criativa. A tese que escreveu em Roma sobre a fé em São João da Cruz mal foi aprovada e saiu um resumo numa revista espanhola. Li o texto e o achei fraco. Mas, para suprir sua limitação, chamou um teólogo eminente que é o cardeal Joseph Ratzinger. Este era a cabeça do papa. O cardeal chegou a comentar com colegas de teologia que, se não fosse ele, haveria muitas insuficiências no magistério do papa. Mesmo assim este papa disse uma frase que eu mesmo ouvi em Puebla e que depois foi publicada oficialmente que vale todo um magistério, pois é revolucionária: "Deus não é solidão, mas comunhão, pois Deus é Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo".

Qual é o significado deste pensamento?

Esta visão resgata o modo cristão de falar de Deus, sempre em forma trinitária e não monoteísta, como no judaísmo e islamismo. Dizer que Deus é comunhão é estabelecer a relação, o amor e interdependência de todos com todos como a estrutura fundamental de todo o ser, do universo e de cada pessoa, feitos à imagem do Deus-comunhão. Em termos políticos significa que Deus é representado no mundo por comunidades e formas participativas de relação e não por um único chefe na família, na escola, na sociedade e na Igreja. Deus não é a solidão do uno, mas a comunhão da pluralidade de pessoas.

E no campo moral, como foi o pontificado?

Na moral o papa foi mais que conservador, foi rígido e fixista e em alguns aspectos com referência ao juízo que fez dos homossexuais e à proibição do uso da camisinha, mesmo com os riscos da aids, até sem misericórdia. Ele possuía uma noção neo-escolástica da natureza como algo dado uma vez por todas, imutável. Essa base é insuficiente para formular um discurso que seja adequado e responsável face ao peso das questões.

Qual seria o perfil que o próximo papa deveria ter para o mundo de hoje?

Acho que o futuro papa tem de ser um profeta e um pastor. Um profeta que com coragem denuncia as perversidades e irracionalidades que grassam hoje no mundo, dividindo de cima abaixo a família humana entre aqueles poucos que muito têm e aqueles muitos que pouco têm. A injustiça social mundial significa um grito canino lançado ao céu. Se o papa não escutar esse clamor e não denunciá-lo, não estará na herança de Jesus, que chamou bem-aventurados os pobres e infelizes os ricos.

E qual é o papel de pastor?

Deve ser simultaneamente um pastor que cuida, que consola, que enxuga lágrimas e que alimenta permanentemente a esperança de que não estamos abandonados, mas que Deus anda conosco. Pastor e profeta que se alia a todos os demais líderes religiosos e espirituais que mantêm a chama sagrada da espiritualidade acesa e não deixam que sucumbamos no puro materismo e consumismo. E deverá convocar a humanidade a um outro padrão de comportamento face à natureza e aos recursos escassos como água potável e fontes de energia. Se não cuidarmos todos juntos da casa comum corremos o risco de ir ao encontro do pior e até permitir a destruição do projeto planetário humano.

O que deveria mudar na Igreja diante da realidade e dos desafios do século 21?

Muita coisa. Mas eu me contentaria apenas com uma: que a Igreja renuncie à sua arrogância institucional na ilusão de que somente através de sua janela se pode contemplar a paisagem divina e que somente ela possui o monopólio da revelação e da verdade revelada. Essa arrogância é insustentável teologicamente, pois pressupõe que Deus apenas cabe dentro da cabeça dos católicos ou cristãos e que o espírito está amarrado ao discurso da Igreja. O que sabemos pelas próprias fontes da fé é que o Filho ilumina cada pessoa que vem a este mundo e não apenas os batizados.

É possível que haja mudanças expressivas no campo da ética e da moral? Haveria alguma alteração para questões como aborto e comportamento sexual?

Não creio que um papa sozinho tenha coragem de fazer inovações nestas áreas, dado o peso da tradição do magistério papal dos últimos anos, caracterizada como rigorista e inflexível. Criaria divisões profundas na cristandade. Seguramente nas discussões anteriores à eleição os cardeais fazem acertos doutrinários e morais que o futuro papa deve assumir. Para quebrar esse impasse instituicional, clama-se por toda a Igreja por um novo concílio. Desta vez será com mais participação de toda a Igreja, com leigos, homens e mulheres, padres, representantes de comunidades ao lado de bispos e padres além de representantes de outras religiões.

Ciência e fé: poderá haver novidade em relação a pesquisas com células-tronco?

Talvez até, face às novas exigências da globalização, far-se-á um concílio ecumênico. Aí, sim, haveria a possibilidade, especialmente com a contribuição dos leigos e de cientistas, de haver modificações com referência à moral, aos costumes e às formas diferentes de expressar a fé.

A Igreja mantém-se irredutível na exigência de celibato para o sacerdócio e não discute a proposta de ingresso das mulheres. Esses itens podem evoluir?

Podem evoluir como evoluíram nas outras Igrejas. Tratam-se, no fundo, de questões disciplinares que surgiram um dia e que podem ser abolidas. A Igreja só teria vantagens com a abolição da lei obrigatória do celibato. É perfeitamente plausível que haja padres celibatários por opção e padres casados e até padres "pro tempore", apenas por um determinado tempo. Isso permitiria à Igreja atender mais adequadamente o déficit de ministros em todas as dioceses. A Igreja está diminuindo numericamente em muitas partes do mundo, por causa desta questão do celibato. Da mesma forma com referência às mulheres. Bastava a Igreja reconhecer e consagrar o que as mulheres já fazem nas comunidades, onde elas têm hegemonia na condução da vida comunitária. A maioria das igrejas já deu este passo. Esse tema também exigiria um concílio porque um papa não suportaria sozinho as pressões contrárias.

Apesar de ter deixado o ministério e se desligado da Ordem dos Franciscanos, o senhor continua fazendo teologia. Poderá voltar ao magistério com o novo papa?

O Vaticano teria preferido que eu fosse tudo menos teólogo. Melhor seria fazer-me subdiretor da Coca-Cola do Rio. Mas continuei como teólogo, dando cursos, aulas em faculdades ecumênicas e sendo professor visitante em várias universidades européias que têm dentro delas faculdades de teologia. E tenho continuado a pesquisa e publicação de textos. Tenho percebido que, como leigo e teólogo, posso penetrar em lugares e dialogar com grupos com os quais dificilmente um teólogo institucional seria convidado, seja no nível das bases, dos movimentos sociais, seja no nível acadêmico ou até com empresários, banqueiros, políticos e pesquisadores. Nestas circunstâncias não faz sentido voltar a ser teólogo com uma função institucional. A situação de leigo permite uma inserção mais profunda na realidade concreta e sentir os problemas e as buscas humanas, também perceber quanta santidade existe entre as pessoas que muitas vezes sequer se inscrevem num credo religioso.