Título: Um fio de cabelo, R$ 360 e pode-se descobrir se uma pessoa usa drogas
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/04/2005, Vida&, p. A30

"Se você desconfia que seu filho usa drogas, você deve saber se ele realmente as usa, quais drogas ele usa e quanta droga ele usou nos últimos 90 dias." A afirmação está no site de um laboratório que comercializa kits para detecção do consumo de 12 tipos de substâncias ilícitas por meio da análise de fios de cabelos ou pêlos do corpo - uma amostra que pode ser coletada sem o consentimento da pessoa, diferentemente dos tradicionais exames de sangue e urina. Contundente, a proposta oferece por R$ 360 a possibilidade de encomendar o exame pela própria internet ou pelo telefone. O resto do processo é feito via correio. Em duas semanas, o envelope com o resultado está nas mãos da família. Não é preciso se expor, sair de casa ou conversar com ninguém. Tudo transcorre de maneira discreta e sigilosa.

Direta, a mensagem atinge em cheio familiares preocupados e inseguros, que na falta de uma certeza, e munidos de uma desconfiança, recorrem à tecnologia em busca de uma resposta concreta - apresentada em forma de números e gráficos que classificam os resultados positivos como levíssimos, leves, moderados, graves e gravíssimos. Ranking criado pelo próprio laboratório baseado nos seus históricos de exames.

Polêmica, a idéia leva para o ambiente doméstico, e para as delicadas relações familiares, um tipo de vigilância já usada por algumas empresas e instituições, principalmente para profissionais que lidam com atividades de alto risco. Nesse ponto, levanta questionamentos sobre ética, privacidade e confiança, sendo alvo de psicólogos, psiquiatras e especialistas em prevenção e tratamento.

Recente no Brasil para uso doméstico, o teste é comercializado pela empresa americana Psychemedics em mais de 30 países, sendo mais difundido nos Estados Unidos, onde é aceito dentro do governo, de empresas, de algumas escolas e da vida privada. Sua propagação está ligada à estratégia americana de combate às drogas, baseada na repressão e na intolerância ao consumo, diferente da posição européia que segue a linha da redução de danos.

Seja como for, o teste com fios de cabelo e pêlos representa um aprimoramento de outras tecnologias para detectar substâncias ilegais. Já havia no Brasil um outro teste que também podia ser feito às escondidas, mas que detectava apenas uma droga em um intervalo pequeno de tempo ao encostar um aparelho na pele ou em objetos tocados pela pessoa. Era mais simplificado, mas já apontava para um refinamento cada vez maior das formas de vigilância. O novo teste, desde que foi disponibilizado para famílias, há quatro meses, teve cerca de 2 mil consultas brasileiras.

IMPOSIÇÃO

A desconfiança, o medo e a dificuldade em conversar sempre aparecem nas explicações dos familiares que recorreram ao teste. E as respostas dos filhos, submetidos com ou sem conhecimento, estão mais associadas à negação, agressão e afastamento, pelo menos num primeiro momento. "Ele negou até o último momento, quando mostrei o resultado positivo para cocaína", conta a gerente administrativa de vendas Elaine*, de 39 anos, mãe de um rapaz de 19. Desconfiada e preocupada com o filho, ela conta que, antes de apelar para o teste, tentou uma aproximação. Sem retorno, abriu o jogo: "Cheguei para ele e disse que não acreditava no que ele estava dizendo, e que iria testá-lo."

Depois do resultado, e de uma reação agressiva e de retraimento, veio a confissão. E a dúvida da mãe sobre como agir a partir de então. "Ele disse que não era dependente, que usava de vez em quando. E eu fui procurar ajuda para saber como proceder. Estamos agora trabalhando nisso, em um momento de melhorar nossa relação e ter um diálogo melhor", conta. Mesmo assim, ela deu o ultimato: em 90 dias repetirá o teste e quer um resultado negativo.

Na família do aposentado João*, de 68 anos, a decisão de aplicar o teste no neto de 17 anos foi tomada junto com o filho, de 41 anos. "Tive esse problema quando meu filho era adolescente. Mas na época não soube agir, fui violento com ele. Quando meu filho me procurou para dizer que tinha o mesmo problema hoje, resolvemos comprar o teste." O material foi colhido e o resultado veio: uso moderado de maconha. "Vimos que era um uso controlado e não quisemos ser radicais. Conversamos com ele, ele disse que fumava maconha e concordamos em deixá-lo usar um pouco. Repetimos o teste depois, e agora vamos fazer o terceiro, para saber se continua baixo."

Mas em um universo dominado por sutilezas e dinâmicas familiares completamente diferentes, as reações são imprevisíveis. "Ele ficou perturbado, nervoso. Foi muito difícil a convivência depois. A gente tentava conversar, ele não aceitava. Sofreu bastante, até que procuramos uma psicóloga e ela recomendou que a gente desse um tempo para ele", conta a comerciante Antonia*, de 41 anos, que aplicou o teste no filho de 15 anos. Mesmo com toda a reação negativa, ela acredita que fez o melhor: "Tive de fazer, e vou repetir a cada três meses, porque droga dentro de casa não dá para a gente permitir, né?"

Na análise da psicoterapeuta Mônica Gorgulho, diretora da Associação Internacional de Redução de Danos e coordenadora da ONG Dínamo, que trabalha com informações sobre drogas, a ação pode trazer conseqüências negativas para o futuro da relação familiar e o amadurecimento dos adolescentes. "Não achamos que essa seja a melhor forma. Mesmo abrindo o jogo, o filho fica sem opção. É uma imposição. E a partir disso ele vai agir de duas maneiras. Ou tentar mascarar o uso ou mesmo parar de usar. Mas não vai parar por uma consciência própria, por uma decisão pessoal. Vai parar por obrigação. E aí há uma grande diferença, inclusive no processo de amadurecimento do jovem, dele reconhecer as situações de perigo e as conseqüências do que ele faz."

Para ela, testar os filhos é optar pelo caminho mais fácil. E que muitas vezes não leva a uma modificação efetiva, porque a consciência do jovem não foi afetada pela experiência. "A pessoa testa, descobre e aí? A relação de confiança e de diálogo que deveria ter sido estabelecida foi destruída."

É uma posição semelhante à defendida pelo psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo ele, é comum receber no consultório familiares querendo usar o teste nos filhos. "Sempre respondo que sou contra. E explico que só o fato de começar por um teste já parte de um nível de desconfiança tão grande que acaba minando todo o processo de diálogo e confiança. Cria uma paranóia na família", afirma.

Há ainda outra questão levantada pelos profissionais, relacionada à falta de conhecimento da maioria dos pais sobre as drogas. "Acho que esse tipo de teste não deveria ser disponível para uso doméstico, fora do contexto médico. Quando você pega um leigo, envolvido afetivamente, os prejuízos muitas vezes são maiores do que os benefícios", diz o psiquiatra André Malbergier, coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) da Universidade de São Paulo (USP).

Pela experiência em grupos de ajuda para dependentes e familiares na ONG Amor Exigente, a voluntária Mara Silva Menezes defende que não existe uma resposta única para o problema. "Vejo aqui no grupo que fazer o teste foi bom para algumas famílias e que para outras foi um desastre completo. Mas o que fica claro, em todos os casos, é que se o jovem está usando drogas, a família toda precisa ser modificada. Não adianta terceirizar no filho os problemas que são de toda a família."

* Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados