Título: O programa da reeleição
Autor: Suely Caldas
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/04/2005, Economia, p. B2

"O PT reconhece", "o PT aprendeu muito" são frases repetidas amiúde no texto do documento Bases de um Projeto para o Brasil, introdutórias de temas, idéias e projetos que o presidente Lula e seu partido contestaram ao longo de 20 anos e agora elegem com fervor e obstinação. A vivência de dois anos no governo e uma eleição à frente explicam a metamorfose do PT. Trechos do documento sobre a estabilidade do real, Lei de Responsabilidade Fiscal, Fundo Monetário Internacional, juros, dívida pública, agências reguladoras, reformas tributária e da Previdência já foram escritos e poderiam tranqüilamente ser assinados pelos tucanos do PSDB. Apenas dois para ilustrar. Sobre inflação: "Nos anos 80 e no início dos anos 90 os desequilíbrios fiscais foram financiados via imposto inflacionário ou via renegociações traumáticas dos contratos e dívidas. O imposto inflacionário mostrou sua face cruel com os mais pobres..." Sobre agências reguladoras: "A autonomia está ligada ao objetivo maior de garantir o bom funcionamento da infra-estrutura de bens e serviços (...) a agência existe para resistir às pressões de curto prazo, sejam de natureza eleitoral, sejam emanadas de grupos econômicos diretamente interessados." Semelhanças com o que viviam repetindo Fernando Henrique Cardoso e Pedro Malan - inclusive em recados endereçados à oposição petista na época - são evidentes e reais, não meras coincidências.

O chamado "campo majoritário" do PT, que agrega correntes que estão no governo e domina mais de 60% das bases do partido, certamente enfrentará dificuldades para convencer tendências mais à esquerda a aprovarem seu documento. Mas, claramente, Bases de um Projeto para o Brasil não foi feito pensando nos radicais do PT. É muito mais um gesto desse grupo petista dirigido aos eleitores, formadores de opinião e mercado financeiro, antecipando o desenho do que poderá ser o segundo mandato de Lula e sinalizando que não haverá guinadas nem recuos em relação à condução responsável da economia, que prevaleceu até agora e que os grupos de esquerda chamam de "continuidade do neoliberalismo de FHC". Divergências publicamente explicitadas pelos ministros Antonio Palocci e José Dirceu, como taxa de juros Selic e tamanho do superávit primário, não aparecem no documento. Ao contrário, quando os dois indicadores são mencionados, nota-se claramente convergência, certamente negociada. O que não acontece com a proposta de Palocci de autonomia do Banco Central, varrida do texto do documento.

Se esse for - e tudo indica que será - o discurso de campanha de Lula na disputa eleitoral de 2006, haverá muito mais identidade de conteúdo do que diferenças nos embates entre o PT e o PSDB. Os dois candidatos rivais com maiores chances de vitória tenderão a se digladiar por questões menos programáticas. O PT vai atacar as privatizações do governo FHC, que já passaram, os tucanos vão mirar o empreguismo petista, que inchou a máquina e aumentou os gastos fixos do Tesouro.

Diferente da Carta aos Brasileiros, de junho de 2002, em que Lula assumiu compromissos para um mercado financeiro desconfiado e incrédulo diante de 20 anos de pregação do calote na dívida, fora FMI e Alca e política monetária expansionista, os juramentos contidos em Bases de um projeto para o Brasil chegam no momento em que Lula já provou não ser mais aquele incendiário de propostas aventureiras do passado. A percepção de risco Lula, que quase fez o real voar pelos ares em 2002, tende a atenuar muito em 2006.

Porém, apesar dessas mudanças, do "reconhecimento" de erros de 20 anos e do "aprendizado" dos últimos dois anos, quem lê o documento do "campo majoritário" não deixa de se indignar com o estilo infernal e predatório de oposição que o PT exerceu nos oito anos de governo tucano e que prejudicou muito mais o País e a população do que o adversário FHC. Se era para continuar o programa do governo que Lula rotulava de "neoliberal", por que votar contra as reformas previdenciária e trabalhista, que saíram magricelas por falta de apoio no Congresso? Por que propor o rompimento com o FMI se a intenção era renovar o acordo com o fundo? Por que entrar com uma Adin no STF contra a Lei de Responsabilidade Fiscal que hoje elogia e lhe é útil? Por que rejeitar projetos que buscavam o equilíbrio fiscal se agora persegue o mesmo objetivo?

Se os parlamentares do PT pensassem mais nos interesses do País e menos em tomar o poder a qualquer preço, teriam ajudado a antecipar o futuro, fazendo avançar as bases para deslanchar o desenvolvimento, o crescimento econômico, o emprego, o progresso social. E, hoje, estariam discutindo outros temas, não mais a pauta de assuntos do governo anterior.