Título: Nepotismo ofende a ética e a cidadania
Autor: Marco Antonio Rocha
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/04/2005, Economia, p. B2

Nepote, ou favorito do papa nos meados do século 17, sobrinho do Sumo Pontífice, conforme os dicionários - por extensão, conselheiro do papa -, deu origem à palavra nepotismo, que designava de início a autoridade que os sobrinhos ou parentes do papa tinham na administração eclesiástica e, finalmente, como sabemos, designa hoje o favoritismo de políticos aos seus parentes, principalmente na conquista de polpudos empregos públicos sem concurso. Há 15 dias, em artigo intitulado 'Será que chegou a vez da ética?', levantamos aqui uma cuidadosa hipótese de que talvez, graças ao inegável amadurecimento da opinião pública brasileira, o comportamento ético estivesse encontrando lugar de maior destaque na vida pública brasileira. Era também nossa esperança declarada que isso estivesse sendo crescentemente exigido, da parte do público, nas relações que o governo obrigatoriamente deve manter com todos nós, os "súditos".

Alguns leitores tiveram uma reação cética, na base do só mesmo com muito esforço é possível imaginar que a ética esteja ocupando algum lugar de destaque na política brasileira; outros pediram maiores esclarecimentos sobre pontos que consideraram obscuros do artigo (culpa do autor, claro). Mas, houve quem concordasse.

Coincidência ou não, logo na semana seguinte se apressou a tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara de seis emendas constitucionais que visam a coibir o nepotismo, vedando a contratação de parentes até segundo grau em cargos de confiança, isto é, sem concurso, nos três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Eis aí, ao que tudo indica, uma contribuição involuntária e por linhas tortas do ínclito deputado Severino Cavalcanti, presidente da Câmara, ao aperfeiçoamento dos costumes brasileiros. Sim, porque as exóticas manifestações do notável parlamentar a favor do nepotismo, como prática saudável, e em defesa da nomeação do seu sobrinho, a cuja posse compareceu de maneira espalhafatosa, foram de tal modo recebidas e de tal modo repudiadas pela opinião pública que seus colegas parlamentares se apressaram a fazer avançar dispositivos legais de sentido diametralmente oposto.

Trata-se, é claro, de um primeiro passo e os céticos dirão que essas medidas não passarão no plenário ou até que não chegarão à votação em plenário, uma vez que, para a maioria dos políticos, isso não interessa. Em outras palavras, para que isso de fato se transforme em lei ainda há um longo caminho e o mais provável é que, passado este momento em que o assunto meio que virou moda, será fácil "deixar pra lá" - coisa nossa, muito nossa (licença, Noel Rosa!).

Porém, mesmo que isso não se transforme em lei, todo político que pretende seguir carreira neste país fica advertido de que os órgãos de imprensa estarão escrutando com lentes de Sherlock os atos de nomeação ou de indicação de sua lavra e de que o patrocínio de afilhados e apaniguados haverá, cada vez mais, de ser apontado à execração do público. Isso talvez não afete, numa primeira etapa, a chamada arraia miúda, os carreiristas de baixo vôo, de alçada municipalista restrita. Mas, para os pretendentes a pódios cada vez mais elevados, o nepotismo será uma carga tão mais pesada quanto mais degraus estejam galgando.

O nepotismo é sobretudo uma ofensa à ética, a despeito das opiniões do ínclito presidente da nossa Câmara dos Deputados. Todo cidadão brasileiro sabe disso. No setor privado é muito malvisto e tanto faz que seja praticado pelo patrão ou pelas chefias de segundo e terceiro escalões. No setor público, evidentemente, além de ser uma ofensa à ética, é um agravo à cidadania, ao princípio fundamental da democracia.

Já comentamos aqui a carga que uma ofensa à ética representou e continua representando na carreira política do ministro José Dirceu. Os pingos que ele nunca colocou nos "is", até hoje, sobre o caso Waldomiro, praticamente eliminam qualquer possibilidade de que galgue qualquer outro degrau acima dos que já galgou. Talvez não precise e nem queira, mas, de qualquer forma, está barrado no baile...

No momento, temos o prato da vez, que é o senador Romero Jucá, com sua dificuldade de se desvencilhar de uma espécie de atestado de antecedentes duvidosos, no mínimo. O fato de ter assumido um cargo espinhosíssimo proclamando que sua missão era acabar com o déficit e as fraudes na Previdência apenas acrescenta uma dose de desconcertante ironia ao seu trajeto, ao mesmo tempo que deixa para o governo a tarefa de explicar o inexplicável - como pôde nomear para tão importante missão uma pessoa com história tão confusa?

Esses são casos notáveis e notórios. Mas todos os dias é possível acompanhar pela imprensa pequenas, médias ou grandes transgressões à ética praticadas por autoridades do governo ou mesmo por políticos da oposição - e que não incluem apenas avanços nos dinheiros públicos. Há também a falta de ética intelectual quando falsos problemas são apontados para desviar a atenção pública dos verdadeiros, quando argumentos esdrúxulos são usados para justificar medidas igualmente esdrúxulas, quando estatísticas são falseadas ou manipuladas para inflar a folha de serviços de governos inoperantes - enfim, não é necessário desfiar aqui as muitas variantes de desvios éticos contra os quais a sociedade precisa estar permanentemente advertida e prevenida.

Por exemplo, cada vez que governos estaduais, municipais ou mesmo o federal criam programas que alegadamente trarão benefícios para contribuintes inadimplentes, permitindo que reduzam suas dívidas com o Fisco sob certas regras ou dilatem prazos de pagamento, há neles, em primeiro lugar, uma ofensa direta à ética, uma vez que o mau contribuinte passa a ter um tratamento privilegiado, em detrimento do tratamento (ou da falta de tratamento) dispensado ao bom contribuinte. Em nome de quê? Da melhoria momentânea da arrecadação? Ou não será para atender a pleitos de amigos do rei em nome de um benefício democrático e generalizado?

Quantos grandes sonegadores já não se viram agraciados por essas "bondades" fiscais para, num segundo momento, continuarem com o mesmo tipo de problema que as justificou lá atrás? A sobrevivência de diversos empresários brasileiros, eternamente falidos, embora muito badalados nas colunas sociais, se explica por sua capacidade de dar a volta por cima, como se diz, ou por suas relações mutuamente compensadoras com governantes atentos às agruras de contribuintes inadimplentes e sempre dispostos a criar mais um daqueles programas avaliatórios?

São indagações que dizem respeito à ética nas relações do governo com a sociedade como um todo e que só pode ser reforçada pelo trabalho de permanente vigilância da imprensa, tão malvisto pelos poderosos de todos os matizes.