Título: O fiasco na OMC
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/04/2005, Notas & Informações, p. A3

Se ainda resta alguma serenidade aos formuladores e executores da nossa política externa, o melhor que poderão fazer será tirar do fiasco da candidatura brasileira à direção-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) as lições que o tempo já fez emergir. O Brasil deve e pode exercer liderança, tanto no âmbito regional como nas organizações multilaterais onde são debatidos e decididos temas relacionados com os interesses nacionais. Mas a liderança, ao contrário do que fazem crer o presidente Lula e seus assessores diplomáticos, não é uma mera questão de "vontade política" - que é o que Lula dizia faltar a todos os governos que precederam o dele. Muito menos é uma imposição de interesses e de idiossincrasias a terceiros países, como se eles também não tivessem posições próprias a defender. O Itamaraty acaba de constatar - e esperamos que também a aprender - que, se o Brasil é um país importante nos foros multilaterais e seus representantes diplomáticos têm habilidades profissionais que os distinguem na formação de consensos, isso não o exime da árdua tarefa de harmonizar posições com a maioria. E que essa necessidade é tão mais premente quanto mais importantes forem os objetivos a atingir.

O lançamento da candidatura do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa - por ele encarada como uma "missão" - foi um gesto de mesquinha retaliação contra a candidatura, apresentada bem antes, do ex-chanceler uruguaio Carlos Perez del Castillo. O Itamaraty nunca fez segredo de que considerava Perez del Castillo inadequado para o cargo porque atribuía a ele, na época presidente do Conselho Geral da OMC, o fracasso da reunião de Cancún, por não ter atendido às reivindicações dos países em desenvolvimento que propunham regras de liberalização do comércio agrícola.

Esse veto, fruto de incontido ressentimento, dividiu decisivamente o campo que o Itamaraty deveria tratar de consolidar, se o objetivo fosse criar na OMC um ambiente propício ao fim progressivo do protecionismo agrícola. Em primeiro lugar, a posição brasileira dividiu o Mercosul, pois ao Uruguai, tratado como se fosse um sabotador dos interesses hegemônicos do Brasil, uniu-se incontinenti a Argentina. Depois, dividiu ainda mais o já fragmentado G-20, que, criado por inspiração do Brasil antes da reunião de Cancún, para enfrentar as potências protecionistas, depois de cumprida essa tarefa adquiriu outras feições, inclusive com o ingresso do Uruguai.

O Itamaraty, em resumo, não foi capaz de utilizar a sua influência e a capacidade de articulação que havia demonstrado em outras ocasiões para encaminhar a sucessão do diretor-geral da OMC. Alienou o apoio regional que seria imprescindível para o sucesso da candidatura Seixas Corrêa. E, finalmente, ficou praticamente isolado quando, concluída a primeira etapa do processo de seleção do diretor-geral, resolveu questionar a transparência da consulta. Apenas a China e a Índia se uniram ao Brasil nesse questionamento, outro gesto pouco refletido que poderá deixar o Itamaraty num beco sem saída.

Afinal, em nota oficial, o Itamaraty afirma ter "dúvidas em relação aos critérios que foram empregados para colher as preferências dos países membros da OMC e aos parâmetros utilizados para interpretá-los". São palavras duras que, mais que insatisfação com os resultados da consulta que eliminou o embaixador Seixas Corrêa da disputa, revelam desconfianças quanto à lisura de um processo de escolha que era, de antemão, conhecido por todos.

O Itamaraty não soube jogar e não soube perder. Se jogasse com eficiência, não teria sofrido o revés, que é um dos piores de sua história recente. E não soube perder, lançando sombras sobre o comitê de seleção da OMC. A chefe do comitê, embaixadora do Quênia, apoiada pelos dois outros membros, embaixadores do Canadá e da Noruega, não atendeu ao pedido do embaixador Clodoaldo Hugueney para ver os votos. Aconselhou o subsecretário de Comércio do Itamaraty a pedir diretamente aos países membros da organização os votos que proferiram. E um alto funcionário da OMC ainda fez ironia: "O melhor para o Brasil é esquecer, para não se decepcionar mais."

Agora, o Itamaraty está numa sinuca de bico. Não pode votar em Del Castillo pelas razões expostas. E só lhe resta sufragar ou o mauriciano Jaya Krishna Cuttaree ou o francês Pascal Lamy - dos quais não se pode esperar nenhum entusiasmo pela liberalização do comércio agrícola.