Título: Nepotismo e profissionalismo
Autor: José Pastore
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/04/2005, Economia, p. B2

O problema é velho e a solução aventada é mais velha ainda: proibir a contratação de parentes no serviço público. Não seria mais interessante submeter todos os contratados a duras provas de competência e avaliação permanente? Qual é o problema de se ter um parente competente? É melhor que ter um estranho incompetente. Mesmo porque o tráfico de influência pode ser praticado por parentes e não parentes. O Brasil está cheio de exemplos dos dois tipos.

A corrupção e a indisciplina no trabalho só podem ser barrados por meio de controles rigorosos do lado das organizações. Por isso, o ataque que se pretende desencadear contra o nepotismo está com o foco errado. O problema maior está com as organizações, e não com os padrinhos e afilhados. O que o Brasil precisa é de órgãos públicos que atuem com critérios rigorosos no recrutamento e na avaliação de desempenho dos profissionais. Todos têm de estar sujeitos ao mesmo rigor: não rendeu, rua.

O termo nepotismo vem do latim. A palavra "nepot" refere-se a sobrinho. O nepotismo começou a ser praticado pelos papas da Era do Renascimento, que procuravam colocar seus sobrinhos nas altas esferas da burocracia eclesiástica, independentemente de suas qualificações profissionais. Mais tarde, essa prática foi estendida aos demais parentes.

A culpa era de quem? Do "nepot" ou da organização que admitia a entrada de desqualificados?

No setor privado, a condenação do nepotismo não é pacífica. Há empresas que buscam recrutar profissionais competentes e indicados por funcionários, clientes e parentes. O primeiro critério é o da competência. O segundo é o do parentesco ou amizade.

No Brasil, a Fiat, a TAM e o Pão de Açúcar são exemplos eloqüentes dessa prática. Nenhuma delas está no mercado para perder dinheiro ou para abrigar pessoas preguiçosas ou incompetentes. Mas todas têm a mesma filosofia.

A Fiat sustenta que profissionais qualificados e indicados por funcionários (que podem ser parentes) são mais zelosos e formam com a empresa um laço de solidariedade e lealdade de valor incalculável. A TAM, quando solicitava aos passageiros a indicação de candidatos, buscava fazer convergir os interesses dos clientes com os da empresa. O Pão de Açúcar, ao transformar consumidores - donas de casa - em anfitriãs e consultoras, integra a empresa ao nicho de mercado que mais lhe interessa.

O que tais empresas buscam é a aliança do bom profissional com o indispensável comprometimento no trabalho. Isso pode ser alcançado com parentes e não parentes. Não há por que impedir estes.

O nepotismo cria problemas sérios quando praticado em setores estratégicos do serviço público que envolvem interesses conflitantes. É o caso do mundo da Justiça, não apenas dos órgãos do Poder Judiciário, mas de toda a teia que forma o trabalho de julgar. Aqui a situação é grave.

No Brasil, muitos filhos de ministros dos tribunais superiores mantêm escritórios de advocacia para defender os interesses de clientes junto às cortes onde trabalham seus pais. Estes casos são os mais perigosos. A lei atual impede ao filho advogar em processos distribuídos ao pai. Mas isso é insuficiente para evitar o uso de "advogados-laranjas".

Esses são os casos que pedem o mais absoluto rigor, mesmo porque o fenômeno é de grande amplitude. Segundo dados de 2001, dentre os ministros do Superior Tribunal de Justiça, 36% dos seus filhos eram advogados. Dentre os juízes dos tribunais estaduais, o porcentual era de 37%; nos tribunais regionais, 38%; no Tribunal Superior do Trabalho, 42%; e no Supremo Tribunal Federal, 67%. Esses números não levavam em conta esposas, genros, noras, sobrinhos e sobrinhas que exercem a advocacia (18/04/2001, Jornal da Tarde, "O nepotismo é sempre ruim?", José Pastore).

Aqui, sim, os controles devem ser severíssimos. As sociedades mais avançadas erguem anteparos muito mais altos que tornam praticamente impossível para os filhos se aproveitarem, direta ou indiretamente, do relacionamento com seus pais. Os códigos de ética são rigorosos e as penalidades são aplicadas rapidamente e com ampla visibilidade. É aí que está o seu grande poder preventivo, pois penas aplicadas com lentidão e às escondidas são um convite à contravenção. Será que a lei que vai combater o nepotismo cobrirá esses graves casos? Penso que não. Por isso será insuficiente e fora de foco.

*José Pastore, professor da FEA-USP, é membro

da Academia Paulista

de Letras. Home page: www.josepastore.com.br. E-mail: jpjp@uninet.com.br