Título: A queda de Gutiérrez
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/04/2005, Notas & Informações, p. A3

A situação em que se colocou Lucio Gutiérrez, ontem destituído da Presidência do Equador e imediatamente substituído pelo vice-presidente Alfredo Palácio, foi descrita com perfeição por um analista político: sem saber como sair da crise - que não nasceu no seu governo -, o presidente cavou um buraco ainda mais fundo, despejou gasolina e acendeu o fósforo. Seria demais dizer que a crise punha em risco a democracia equatoriana. Naquele país, há eleições periódicas, mas os outros predicados da democracia, como o respeito às instituições e o primado da lei, simplesmente não existem. O que estava em jogo era o mandato de Gutiérrez.

Depois de ajudar a derrubar dois presidentes, o coronel Lucio Gutiérrez foi eleito presidente em 2002. Fez malsucedidas reformas econômicas que logo lhe custaram a popularidade. Contra ele também pesavam acusações de corrupção.

Em dezembro do ano passado, sem ter maioria no Congresso e ameaçado por um processo de impeachment, demitiu 27 dos 31 membros da Corte Suprema de Justiça, substituindo-os por gente de confiança. Livrou-se, assim, dos juízes que, meses antes, haviam tentado destituí-lo com base em acusações de corrupção. O novo tribunal, entre outras extravagâncias, anulou três processos contra o ex-presidente Abdala "El Loco" Bucharán e inocentou o ex-presidente Gustavo Noboa, também processado, que, assim, puderam retornar do exílio.

Graças a essa manobra, Lucio Gutiérrez obteve o apoio dos partidários dos ex-presidentes no Congresso, livrando-se do processo de impeachment.

Mas a intervenção do presidente no Judiciário, sem que tivesse atribuições constitucionais para tal, a consagração da impunidade de dois políticos corruptos e impopulares que haviam sido depostos depois de violentas manifestações populares e, principalmente, o retorno deles a Quito - Bucharán voltou proclamando-se candidato à presidência - deixaram-no sem qualquer apoio político.

A Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conae), que apoiara a eleição de Lucio Gutiérrez, passou para a oposição. Trata-se de um adversário dos mais temíveis. A Conae tem um enorme poder de mobilização, que já usou para ajudar a derrubar quatro presidentes - Abdala Bucharán, Gustavo Noboa, Fabián Alarcón e Jamil Mahuad. No final da semana passada, uma manifestação convocada pela Conae foi contida praticamente às portas do palácio presidencial pelas forças de segurança. Diante disso, Gutiérrez decretou o estado de exceção em Quito. A medida, no entanto, não dissuadiu os manifestantes de sair às ruas para pedir a renúncia do presidente, nem impediu que os protestos se espalhassem pelas principais cidades do país.

Politicamente isolado, contando apenas com a solidariedade das Forças Armadas, em menos de 24 horas Gutiérrez revogou o estado de exceção, para evitar mais violência e o conseqüente derramamento de sangue. Também para aplacar os ânimos, dissolveu a Corte Suprema de Justiça - aquela cuja maioria ele, com o apoio de parlamentares, havia constituído em dezembro. Apesar de o ato de dissolução não ter qualquer base legal e constitucional, o Congresso se reuniu no domingo e convalidou o decreto presidencial.

Essas medidas, mais as declarações de Gutiérrez de que admitia a realização de um referendo popular sobre seu mandato, deram ao Equador uma aparência de calmaria.

Mas a crise não estava superada. As instituições equatorianas são fracas, a população - à semelhança do que ocorre na Bolívia e, em menor grau, no Peru - está profundamente dividida em bases étnicas e o país não gera divisas nem mesmo para pagar o serviço da dívida. A crise econômica e social, cada vez mais acentuada, levou a população a descrer das tímidas reformas liberalizantes que foram feitas em decorrência do acordo assinado com o FMI e, após uma sucessão de presidentes desastrados e corruptos, não se confia nos partidos e nos políticos. Nesse cenário de caos institucional, o Congresso, por 62 votos a zero, declarou vaga a função de presidente da República, depois de deliberar que Lucio Gutiérrez não exercia fielmente as suas responsabilidades. E, com isso, o coronel tornou-se o quarto presidente sucessivo do Equador a não cumprir integralmente seu mandato, nos últimos oito anos.