Título: MPs e segurança jurídica
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/04/2005, Notas & Informações, p. A3

D ois dias após criticar em plenário o número excessivo de medidas provisórias (MP) editadas pelo Executivo, o presidente do Senado convocou entrevista para avisar o Palácio do Planalto de que o Legislativo vai reagir. A idéia é converter em projetos de lei as MPs que não atenderem às exigências constitucionais de urgência e relevância, disse o senador Renan Calheiros (PMDB-AL). "Ninguém pode substituir o Congresso no papel de legislar. As MPs impõem uma abstinência em detrimento do País. Exigimos o direito de legislar", concluiu. Embora essas declarações tenham acirrado a crise entre o PMDB e o governo, deixando em muitos a impressão de que o motivo de tanta indignação decorreria do fato de Calheiros e seu partido não estarem conseguindo indicar aliados para cargos no Executivo, a verdade é que o protesto tem fundamento. Como as MPs trancam a pauta do Congresso quando seu prazo de validade está prestes a vencer, não permitindo a votação de qualquer outro projeto, o trabalho legislativo é prejudicado.

Só este ano, das 19 sessões deliberativas realizadas, 13 foram bloqueadas por MPs. Com isso, 135 matérias - das quais 26 relativas à nomeação de embaixadores e dirigentes de agências reguladoras - tiveram de aguardar a desobstrução da pauta. Entre os projetos importantes cuja tramitação foi prejudicada, destaca-se o das Parcerias Público-Privadas.

O comprometimento do trabalho do Congresso, no entanto, é apenas um dos lados da questão. O outro é a disseminação da insegurança jurídica decorrente da tendência do Executivo de embutir no texto de cada MP matérias sem conexão lógica e temática entre si. Das últimas 26 MPs editadas, em pelo menos 9 o governo do PT recorreu a esse expediente. E, em várias delas, evidenciando o modo escolhido para "aparelhar" a administração pública, incluiu a criação de novos cargos.

A MP 220, por exemplo, trata de incentivos ao programa de fontes alternativas de energia elétrica e disciplina a instalação do Conselho Nacional de Combate à Pirataria, além de criar cargos públicos. A MP 227 regula o Programa de Biodiesel e a importação de equipamentos esportivos. A MP 229 regulamenta a concessão da Bolsa-Atleta e prorroga a campanha do desarmamento. A MP 233 muda a denominação do Instituto Nacional do Semi-Árido e cria "cargos de assessoramento" nos Ministérios do Esporte, da Defesa, da Ciência e Tecnologia. A MP 237 estabelece medidas para fomentar exportações e altera o prazo de validade da MP 232, que, editada a pretexto de corrigir as deduções do Imposto de Renda da Pessoa Física, aumentava a carga tributária dos prestadores de serviço. E a MP 246, concebida para extinguir a Rede Ferroviária Federal, concedeu gratificação de desempenho aos servidores do Departamento Nacional de Pesquisa Mineral.

Segundo o governo, agregar temas sem conexão entre si é um meio de "economizar" MPs. "Se esse artifício não fosse adotado, em vez de uma MP tratando de três temas, seriam necessárias três MPs", explica o líder do PT na Câmara, Paulo Rocha (PA), após afirmar que a criação de novos cargos atende ao requisito da relevância, pois seu objetivo seria "recompor instituições sucateadas pela administração anterior".

Esses argumentos, contudo, agridem o bom senso. Ao se valer de MPs para editar matérias que deveriam ser tratadas por lei ordinária, o Executivo interfere na dinâmica do Congresso e subverte o processo legislativo previsto pela Constituição, atingindo o princípio do equilíbrio dos Poderes. E, ao misturar temas distintos e de desigual importância, as MPs, quando não agridem a hierarquia das leis, alteram a hierarquia das leis, comprometem a lógica da ordem jurídica, solapando a segurança jurídica de que cidadãos e empresas necessitam para balizar suas decisões.

Por isso, independentemente das motivações que levaram o presidente do Senado a reagir ao uso abusivo das MPs, essa é uma iniciativa oportuna para a preservação do Estado de Direito. Nenhuma democracia pode prescindir de instrumentos legais que permitam aos governantes tomar decisões estratégicas, para fazer frente a crises. O problema é que, ao utilizá-los a pretexto de "acelerar" o processo legislativo e "recompor as instituições", como pretendem os petistas, esses instrumentos estão sendo desvirtuados, ferindo com isso o que o regime democrático tem de essencial: a segurança jurídica.