Título: Dr. Jekyll e Mr. Hyde
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/04/2005, Notas & informações, p. A3

Diante do improviso do presidente Lula na abertura do 16.º Congresso da Organização Regional Interamericana de Trabalhadores (Orit), quarta-feira em Brasília, difícil evitar a analogia com a criatura de dupla personalidade - o médico que às noites se transforma em homicida - do romance de 1886 do escocês Robert Louis Stevenson. Pois é de abismar como uma mesma autoridade, no espaço de pouco mais de uma hora, é capaz, alternadamente, de dar provas de absoluta lucidez e do mais completo alheamento. Se a metamorfose do fictício doutor é um caso de psicopatologia, a transformação do presidente resulta de algo incomparavelmente mais singelo: ora ele sabe perfeitamente do que está falando, ora, ao mudar de assunto, revela assustador desconhecimento de causa - sindicalismo, em dado momento; política externa, no outro. O lado lúcido de Lula está na sua concepção do papel dos sindicatos e do ativismo sindical na atualidade. Prova disso já havia sido a sua fala no sindicato dos metalúrgicos do ABC, dois dias antes.

Na ocasião, ele fez uma comparação irrepreensível com o Brasil de 30 anos atrás, em matéria de política sindical e dos atributos exigidos de um líder operário. À época, exemplificou, não tinha lá muita importância dominar o conceito de estrutura produtiva; hoje, é obrigação elementar de um dirigente de sindicato. Anteontem, o presidente retomou o tema, a propósito do projeto de reforma sindical do governo e do imperativo de debater a adiada reforma trabalhista.

Em síntese, advertiu que "o dirigente sindical que quiser fazer em 2005 o tipo de sindicalismo que eu fazia na década de 70 vai fazer equivocado - hoje tem de ser mais criativo, mais inteligente e mais propositivo". Ressaltou que a reforma sindical é o "resultado do que empresários e sindicalistas conseguiram produzir". E ensinou que "reforma trabalhista não é tirar direito dos trabalhadores, é se adequar à realidade do mundo, às novas condições". Depois, foi duramente criticado pelo presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva.

No que, na realidade, foi o melhor elogio que Lula poderia receber, Paulinho o acusou de ter deixado de representar os interesses sindicais quando foi para o governo. "O presidente afinou", disse. O verbo é perfeito, mas como sinônimo de aperfeiçoar-se, ou, melhor ainda, no sentido dicionarizado de "ajustar, harmonizar, conciliar". É o que se espera, entre outras atribuições, de um presidente da República - mesmo de quem diz "Estou presidente. Eu sou mesmo é dirigente sindical". No ABC, aliás, Lula tinha explicado, com palavras ao alcance do mais novato dos peões, a diferença entre uma coisa e outra.

Depois disso, o doutor Jekyll se transfigurou no senhor Hyde quando as questões sindicais saíram de cena e as questões diplomáticas entraram. Foi nada menos do que um desastre. Difícil apontar o pior: a bazófia (o "avanço" da política externa brasileira nos seus dois anos de governo representou "um avanço maior do que o que foi conquistado nos últimos 40 ou 50 anos") ou as idéias fora de lugar. ("Faz dois anos que não se discute mais a criação da Alca no Brasil porque tiramos a Alca da pauta, fortalecendo o Mercosul e criando uma coisa chamada Comunidade Sul-Americana de Nações.")

Primeiro, políticas externas não avançam ou recuam; são certas ou erradas, têm êxito ou fracassam. A do governo do PT, inspirada na diplomacia do "pragmatismo responsável" do general Ernesto Geisel, é tão equivocada quanto aquela, com a agravante de que a versão original pelo menos tinha sua lógica ao querer tirar proveito da divisão do mundo em dois blocos. Lula pretende o mesmo em um mundo globalizado e unipolar. Nesse sentido, caberia falar, isso sim, em retrocesso. O mundo mudou para o sindicalismo, mas no plano da grande política internacional, para a diplomacia brasileira, estamos nos anos 70. Segundo, Alca não é tema de política externa, mas de política comercial, área em que o governo só coleciona fracassos, como os especialistas independentes são unânimes em julgar.

Já o Mercosul não se "fortaleceu": agoniza. E a "coisa chamada Comunidade Sul-Americana de Nações" é mesmo uma coisa: um rótulo pespegado em algo destituído de conteúdo efetivo. Lula teve ainda a infeliz idéia de mencionar a correlação de forças na Organização Mundial do Comércio (OMC), onde acaba de fracassar a extemporânea candidatura brasileira à presidência. A aspiração do Planalto a uma vaga permanente no Conselho de Segurança corre o perigo de dar no mesmo.