Título: Orçamento e democracia
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2005, Editoriais, p. A3

O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, foi ao Congresso para discutir as inovações contidas no projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2006. Parlamentares protestaram, como se esperava, contra a proposta do governo de limitar a previsão de receitas e despesas na tramitação do orçamento. Reclamaram também do habitual congelamento de gastos pelo Tesouro, que impede a execução de boa parte das emendas por eles apresentadas. O ministro respondeu que se mantém simpático à adoção do orçamento impositivo, isto é, obrigatoriamente cumprido pelo governo, mas acrescentou a ressalva também previsível: é preciso que se respeite, em todo o processo, o equilíbrio efetivo entre receitas e despesas. É preciso, em outras palavras, encarar de um modo inteiramente novo o processo orçamentário. As mudanças contidas no projeto da LDO podem ser o começo dessa inovação. Nada garante que venham a ser, mas o governo tem uma oportunidade rara, neste momento, de abrir uma discussão conseqüente sobre um dos temas centrais da política pública. A elaboração e a execução do orçamento público são momentos de grande importância do ritual democrático. No Brasil, esse ritual, até agora, vinha sendo uma farsa.

As inovações embutidas no projeto da LDO têm objetivos importantes, porém modestos. Se produzirem os efeitos propostos pelo governo, os congressistas serão obrigados a conter seu impulso gastador, respeitando os limites fixados pela previsão original de receitas. Terão de abandonar a prática de inflar a arrecadação projetada, a menos que inflem também a estimativa do Produto Interno Bruto (PIB). Em contrapartida, o governo imporá uma restrição ao seu apetite fiscal. Falta, no entanto, definir o que ocorrerá se a arrecadação administrada pelo Tesouro, apesar de tudo, superar 16% do PIB.

Esses limites são apenas quantitativos. Se forem respeitados poderá haver resultados positivos para a política fiscal, mas o gasto público poderá permanecer tão irracional e tão ineficiente, em termos sociais e econômicos, quanto tem sido neste governo.

Sem outras mudanças, politicamente mais difíceis, a parcela relativamente livre do orçamento continuará muito pequena, provavelmente na faixa de 10% a 12% do total. Nada assegura que as emendas apresentadas pelos parlamentares passem a ser menos paroquiais em seu alcance do que têm sido tradicionalmente.

Na parte classificada como livre, o orçamento continuará, portanto, a abrigar propostas de gastos meramente justapostas, sem nenhuma articulação que assegure alguma eficiência ao conjunto do orçamento. O processo orçamentário, no Brasil, tem pouquíssima semelhança com qualquer esforço de uso racional de recursos escassos. Num país com tantos problemas sociais e tantas deficiências estruturais, um orçamento retalhado como se fosse uma grande pizza é um desperdício que beira o crime de responsabilidade. Alguns entendem que estraçalhar os recursos públicos é um direito democrático exercido pelos parlamentares. Falta discutir esse conceito de democracia. Essa discussão poderia envolver um reexame do processo de emendas como parte de um novo estilo de planejamento da ação governamental.

A qualidade do gasto público poderia melhorar muito, também, se o governo e seus aliados se dispusessem a cuidar, afinal, do bem conhecido problema da rigidez orçamentária. Vinculações de verbas e gastos obrigatoriamente indexados, como os da saúde, garantem apenas a destinação de recursos a certas rubricas. Com tempo, esse processo tende a tornar-se inercial. O resultado é mais desperdício de dinheiro, até porque os setores de governo beneficiados ficam livres do esforço de justificar com planos sua demanda de recursos.

Como não há prioridades nem planejamento efetivo na despesa programada, também não há prioridades a levar em conta nos momentos de contenção ou de congelamento do gasto. O País perde recursos quando as verbas são liberadas, porque sua aplicação é ineficiente, e perde também quando são contingenciadas ou cortadas, porque não se faz distinção entre o essencial e o secundário.

Segundo um velho chavão, o orçamento brasileiro é uma ficção. O problema é que, nesse caso, ficção e realidade são igualmente de quinta categoria.