Título: A futura herança maldita
Autor: Paulo Renato Souza
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

A despeito do crescimento da economia no ano passado e da manutenção da inflação sob controle, o atual governo vem praticando uma série de atos na área fiscal que terão impacto negativo sobre as possibilidades de gestão pública e comprometerão por muitos anos o crescimento futuro da economia. Trata-se de uma verdadeira herança maldita que os futuros governos terão de enfrentar com raio de manobra muito menor do que existente em 2003. Ela deriva da significativa expansão de gastos inflexíveis e que terão repercussão permanente sobre o orçamento público, em especial nas áreas de pessoal e da previdência pública.

Na área de pessoal, temos a expansão geral do número de funcionários associada ao atraso na regulamentação da reforma previdenciária. Como mostrou reportagem do Estado na semana passada, o número total de servidores ativos aumentou em 15 mil pessoas apenas em 2004.

O gasto com pessoal aumentou ainda mais, considerando que houve 24 mil aposentadorias nos dois anos iniciais do atual governo. O governo teve um enorme desgaste político com a aprovação da emenda da reforma da Previdência em 2003, mas o Estado brasileiro até o momento não foi beneficiado, pois a emenda não foi regulamentada. O aumento da idade de aposentadoria para os servidores públicos, que era mais do que necessário, foi desfigurado pela PEC paralela, recentemente aprovada.

Outro ponto fundamental da reforma, o que igualava o tratamento previdenciário entre o trabalhador privado e o público que ingressasse no setor após a reforma, aguarda regulamentação e, enquanto isso, a grande quantidade de novos servidores está sendo admitida no serviço público numa situação exótica, em que contribuem para o sistema antigo sem ter os respectivos benefícios assegurados. Essa situação fatalmente desaguará num grande número de ações judiciais, cujos efeitos anularão os visados pela tão discutida reforma, gerando um déficit que crescerá de forma exponencial.

A política salarial dos servidores públicos é outra área de potenciais problemas futuros. É conhecido e documentado o fato de o serviço público brasileiro ter uma estrutura salarial totalmente diversa do setor privado.

Nos governos, em geral, os servidores menos qualificados têm salários mais altos do que no setor privado e o contrário ocorre entre os de maior qualificação, em que os funcionários públicos têm salários significativamente inferiores aos que são praticados no setor privado.

Durante o governo anterior, as políticas de reajustes diferenciados entre as diversas carreiras do serviço público procuraram enfrentar essa distorção. Além disso, durante aquele período os salários finais tiveram sistematicamente reajustes maiores do que os iniciais dentro das várias carreiras, segundo os dados do Siafi.

Em 2003 e 2004, essa tendência se inverteu de forma expressiva. De um lado, abandonou-se a política de privilegiar as carreiras típicas de Estado, optando-se por reajustar melhor as carreiras de nível médio e básico. Dentro das carreiras reajustadas, foram concedidos, em geral, reajustes maiores para os níveis iniciais em relação aos finais, reforçando a distorção histórica existente na estrutura salarial brasileira entre os setores públicos e privados. Os futuros governos terão enormes dificuldades de corrigir essas distorções.

A reportagem do Estado já mencionada destaca também o expressivo aumento do número de servidores não concursados, que passaram de 18 mil em 2002 para 33 mil em apenas dois anos. Esse número poderia ser explicado pela redução dos trabalhadores terceirizados por contratos com empresas de locação de mão-de-obra.

É espantoso, porém, constatar que o número de trabalhadores terceirizados aumentou como nunca no atual governo, como mostrou documentada reportagem publicada na semana passada pelo jornal O Globo. Esse aumento de não concursados de diversos tipos é apenas um aspecto de um sério problema não quantificável de pessoal que o futuro governo enfrentará: a partidarização e o aparelhamento da máquina pública que estão sendo promovidos de forma acintosa pelo atual governo.

Como conseqüência desse conjunto de políticas, os gastos totais com pessoal já aumentaram de forma expressiva nos dois últimos anos. Em 2002 somavam menos de R$ 73 bilhões e no corrente ano seguramente serão bem superiores aos R$ 91 bilhões previstos no decreto de contingenciamento. Os efeitos maiores, contudo, serão sentidos nos anos futuros, pela permanência desses novos servidores, pelos aumentos nos gastos de aposentadoria e pelas correções nas distorções salariais que se farão necessárias.

Nesse contexto, não surpreendem duas conseqüências extremamente nefastas para o crescimento e que já são claramente observadas na economia brasileira: o aumento sem precedentes da carga tributária e a limitação dos investimentos públicos necessários para melhorar nossa infra-estrutura.

Além disso, dado o aumento dos gastos públicos correntes, fica cada dia mais evidente que o governo está contando cada vez mais com o aumento da taxa de juros como seu principal instrumento para conter a inflação. A elevação dos juros, além de dificultar o crescimento, tem um efeito perverso permanente sobre a expansão da dívida pública.

Em 2003 o atual governo fez enorme estardalhaço em torno de uma suposta "herança maldita" recebida do governo anterior, que limitaria enormemente sua capacidade de governar e de promover o crescimento do País.

Com o tempo, ficou claro que a herança não advinha das políticas implementadas pelo governo FHC, mas sim da desestabilização econômica provocada pelo temor de que o novo governo aplicasse o receituário econômico defendido tradicionalmente por seu partido e que havia orientado a sua atitude irresponsável até então enquanto oposição. A política fiscal atual está construindo as bases para uma verdadeira herança maldita que os futuros governantes deverão enfrentar.