Título: Uma cruzada contra a pomposa e inacessível linguagem dos tribunais
Autor: Fausto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/04/2005, Nacional, p. A10

COSTUME: O direito no Brasil inspira-se no direito romano, encerrando conceitos e costumes muito antigos, e termos em latim. Nos bancos da faculdade, nos livros e nos estudos jurídicos o vocabulário é esse mesmo. Não é invenção dos juízes, mas eles não negam que apreciam o palavreado. "É mesmo difícil para a população entender", reconhece presidente da Comissão pela Efetividade de Justiça Brasileira, Roberto Siegmann. "Temos muita clareza de que essa linguagem, usada pelos juízes e também pelos advogados, às vezes é incompreensível. Mas isso é fruto de uma cultura, o direito é uma ciência, tem sua terminologia própria, com origem latina." Siegmann argumenta que o Judiciário vem sofrendo uma pressão muito grande, com seguidas críticas da sociedade. Daí a importância da suavização do juridiquês. "Quanto mais traduzirmos nossa atividade, e mais a população entendê-la, mais será valorizada a atuação do juiz." Fausto Macedo

F.M. À margem dos autos e da reforma que deu novos ares à estrutura secular do Judiciário, a mais influente entidade de classe da toga abriu uma cruzada que vai encontrar severa resistência nos tribunais, mais robusta até que a reação ao controle externo - o alvo da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) é esse tal juridiquês.

Termos empolados e parágrafos inteiros em latim, incompreensíveis para aqueles que recorrem à Justiça, predominam nos processos, especialmente nas petições dos advogados e despachos e nas sentenças subscritas pelos juízes.

Muitos deles adotam a pompa e lançam mão de variado repertório do vocabulário forense na hora da decisão. Transformam esse ato em intermináveis arrazoados até que, afinal, dedicam singelos um ou dois parágrafos ao que realmente interessa às partes em litígio - a conclusão do julgamento.

Não raro, o autor da ação, ou o réu, se põe a ler e a reler aquela peça. Repete o gesto tantas vezes, e não entende nada. Não é para menos. Afinal, quem tem a obrigação de saber o que vem a ser teratológico, ou aquela coisa a que chamam de hermenêutica, palavras comumente inseridas nas páginas dos processos? Theros, do grego, quer dizer monstro. Teratológico significa argumentação absurda. Hermenêutica é o estudo ou a interpretação da lei.

A comunicação truncada provoca com certa freqüência situações constrangedoras. Testemunhas recebem uma simples intimação e entram em pânico porque acham que vão acabar atrás das grades.

Na semana passada, reconhecendo que o linguajar do fórum é um horror, pesado e injusto com o cidadão comum, a AMB anunciou a ofensiva contra o juridiquês. A entidade abriga quase 15 mil magistrados de todos os segmentos. É a maior associação de juízes do País e do mundo. O plano é levar às ruas, ou mais precisamente aos tribunais, uma campanha de simplificação da redação processual. Medida que independe de projeto de lei ou de emenda à Constituição.

Assim, o primeiro passo é buscar uma mudança de cultura, fazer com que os juízes falem, e escrevam, no idioma do cidadão que não é versado em doutrinas jurídicas. A idéia é substituir as expressões complicadas por outras "mais leves, menos agressivas".

BLITZ

Vai comandar a blitz contra o juridiquês Roberto Siegmann, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, presidente da Comissão pela Efetividade de Justiça Brasileira, braço que a AMB criou para tratar de questões de interesse da toga, como as relativas às alterações nos códigos. "A campanha vai chegar também às faculdades de Direito, pretendemos o engajamento da OAB e do Ministério Público."

Siegmann tem consciência de que essa não é uma missão de fácil cumprimento, até porque não está em lei nenhuma que o juiz não pode ser um erudito ou que terá de escrever com menos formalidade. "Quando a reforma ainda estava em tramitação no Congresso, verificamos que muitos temas, embora relevantes, em nada alterariam a disfuncionalidade do sistema."

Ele admite que uma primeira constatação é de que a linguagem da toga é dose. Mas faz uma ressalva. "Cada ramo de atividade tem um linguajar próprio. Se um juiz participar de um ciclo de economistas, terá dificuldade para compreender as colocações."

"Temos de traduzir o nosso discurso, nossas sentenças e editais, torná-los compreensíveis ao cidadão comum. Diante desse processo de ausência de cultura, o cidadão passa a desconfiar da sentença que ele não entende, do edital que ele não sabe ao certo o que significa", acredita. "O descrédito é um sentimento que temos de combater. Devemos mudar para que a população compreenda e dê importância aos nossos atos e decisões, para que a população não desconfie da atividade jurisdicional."

Há 14 anos na magistratura, depois de advogar por 13 anos, Siegmann é juiz titular de uma Vara do Trabalho no Sul. Para ele, com a informatização dos tribunais, os processos, inclusive as sentenças, "ganharam muito corpo", com reproduções de jurisprudências. "São peças extensas, se tornou fácil apertar um botão e colar textos de jurisprudência. Perderam a objetividade e os tribunais são absolutamente parceiros nisso."