Título: Congresso volta a assaltar cidadão indefeso
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

O título acima seria típico de páginas policiais, não fora o sujeito dela. De qualquer forma, o assunto que abordarei é uma violência contra o cidadão, ainda que legalizada, e faço aqui um boletim de ocorrência, pois ficou em segundo plano no morno noticiário político da semana que incluiu o feriado de Tiradentes. Trata-se do aumento de 15%, com efeito retroativo a janeiro, dado pelo Congresso aos seus servidores e aos do Tribunal de Contas da União, um órgão auxiliar do Poder Legislativo. Em particular, serão beneficiados 12.087 funcionários, sem concurso, da Câmara (77,2% do seu total de funcionários) e 2.071, também sem concurso, do Senado (49,4% do seu total), a um custo de R$378 milhões (!) por ano para os cofres da União. Ou pior, para os bolsos dos contribuintes, assim assaltados (in)justamente no mês em que os do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) cumprem seu dever de acertar as contas com a Receita Federal. Parafraseando expressão presidencial, se movessem seu traseiro e procurassem saber o destino dos impostos que pagam, é provável que seu empenho em pagar o IRPF não fosse tão grande.

Recorde-se que a Receita Federal, de competência arrecadatória reconhecida internacionalmente, há muito tempo desenvolve seu próprio e eficiente programa Fome Zero, para saciar o crescente apetite do leão que a simboliza. Na realidade, é um leão que morde, mas não come, pois é apenas um forte e ágil provedor de recursos. Entre os devoradores de impostos estão apetites como esses do Congresso, que me lembram mais o que na infância via de porcadas indo aos cochos em sítios e fazendas.

A impressão que guardei é a de que esses bichos estão sempre com fome e, por isso, engordam tanto. Assim, dada a propensão a engordar das despesas públicas, talvez fosse o caso de adotar o porco como símbolo do gasto público, até que este demonstrasse um sério compromisso com a esbelteza e a funcionalidade de uma gazela.

O que o Congresso fez com esse aumento foi também uma porcaria em matéria de boa gestão de pessoal e de finanças públicas. Para começar, nada justifica esses quase 15 mil funcionários sem concurso, um enorme exército em que pontificam parentes (inclusive cônjuges), afilhados, amigos, eleitores e cabos eleitorais. No meio dos cargos ocupados pelos sem-concurso, há na Câmara 2.266 cargos de natureza especial (uma daquelas combinações de palavras que não diz nada), dos quais o deputado mineiro Roberto Brandt, com 16 anos na Casa, disse que ignorava a existência (conforme O Globo de 25/4/2004). E acrescentou: "A Câmara tem uma estrutura medieval, com capitanias hereditárias" e "... há um pacto de silêncio sobre o número exato de cargos de confiança." Para dar nome aos bois (desculpe-me o leitor por este passeio pelo reino dos animais), o mais adequado seria chamar muitos dos sem-concurso de "ascones" (assessores de coisa nenhuma), aprimorando expressão comum em Brasília.

Em lugar de gastar mais com tantos deles, o Congresso deveria reduzir sensivelmente o seu número e dar sua contribuição ao ajuste fiscal que a trancos e barrancos o Executivo se empenha em fazer. Aliás, em matéria de trancos e barrancos, um bom uso alternativo dessas centenas de milhões de reais teria sido tapar os buracos e outros muitos defeitos das estradas federais.

Esse aumento também é um péssimo exemplo, pois só vai servir para atiçar as reivindicações dos demais servidores federais. O Executivo até aqui propôs apenas 0,1% para o reajuste linear dos seus. Já os militares, comedidos pelo ofício e sem tantos "ascones" e padrinhos, vêm recorrendo às suas mulheres para cobrar um reajuste prometido para 2005 e até aqui não concedido.

Ainda em matéria de administração de pessoal, além do número exagerado de servidores, sabe-se que os salários pagos pelo Congresso de um modo geral estão acima da média do Executivo e provavelmente também dos pagos pelo setor privado para ocupações de responsabilidades e qualificações equivalentes. Assim, se seguisse o princípio da equivalência salarial, que na administração de remunerações recomenda examinar as pagas por outras organizações, dificilmente o Congresso encontraria justificativa para o que fez. Portanto, na ausência de bons critérios para empregar e remunerar, o absurdo quadro que transparece é o de um empreguismo muito bem remunerado.

Em várias oportunidades já reconheci aqui o mérito de iniciativas de empresários e da sociedade em geral no sentido de conter e reduzir a exagerada carga tributária brasileira. A última dessas iniciativas foi mais uma da vitoriosa Frente Brasileira contra a MP 232. Conforme noticiado por este jornal na quinta-feira passada, essa frente criou um "impostômetro", um painel eletrônico que informa, segundo a segundo, quanto a União, os Estados e os municípios arrecadaram desde a zero hora deste ano.

Muito bem, mas é preciso criar também um "gastômetro". Se já existisse, inclusive com um indispensável mecanismo retroativo, teria mostrado um salto nos gastos públicos com esse milionário aumento salarial que acaba de ser aprovado pelo Congresso. E, ainda, chamaria a atenção também para os gastos, que devem ser outro e não menos importante alvo da campanha contra os impostos excessivos, pois mais despesas públicas tendem a pressionar a carga tributária para cima. Entretanto, essa campanha continua caçando só o leão dos tributos, deixando de lado o engordar das despesas públicas.

No grupo dos que se beneficiam delas estão também empresários que, numa atitude ambígua, só reclamam dos impostos. Assim, neste momento em que o Congresso enche os caixas de seus servidores, certamente os comerciantes de Brasília não se interessarão por um "gastômetro", exceto o que mede a receita de suas lojas. Ou seja, falta também um "coerenciômetro".