Título: No país da informalidade
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Não é só no Brasil. O mundo inteiro, desde a metade do século passado, é varrido por uma onda de informalidade social, política, legal, moral, cultural, verbal e de costumes que põe em risco a própria estrutura das nações. A diferença é que no Brasil, país ainda em formação, sem os anticorpos necessários, a informalidade invade sem resistência todas as áreas, subvertendo normas de comportamento, usos e valores até as raias da anarquia. Sem um mínimo de formalidade a convivência humana se faz impossível. Não só a convivência entre as pessoas, como entre as classes, entre o homem e o meio ambiente, a sociedade e o Estado, e com todas as instituições que imprimem forma e figura à vida do homem na comunidade, como a família, a escola, o trabalho, a Igreja, as associações de qualquer tipo, a Justiça, o Parlamento, a polícia, o exército, etc. É a formalidade que impõe limites à nossa conduta em qualquer setor. Sem limites vigora a lei da selva, dominada por um só mandamento: "Devorai-vos uns aos outros."

No Brasil de hoje, assiste-se à verdadeira carnavalização de todas as formalidades que distinguem uma sociedade civilizada da horda. Da informalidade no trato social nem é preciso falar. A permissividade impera na descortesia generalizada, na grosseria da linguagem, na vulgaridade dos modos, no desrespeito ostensivo pelo próximo. Na ética irrompe a corrupção desenfreada em todos os níveis, públicos e privados, contaminados pela sede de levar vantagem em tudo. Na lei vigoram a obsolescência e a incerteza jurídica, motivada em grande parte pela imperícia na redação. Na política a separação dos Poderes é desrespeitada pelo caudal de medidas provisórias, pelo fisiologismo deslavado e pela falta de compostura de governantes e membros do "baixo clero". Na cultura campeia a falta de estilo querendo passar por estilo. Na religião a pureza e a isenção do culto vêm maculadas pela infiltração ideológica, como a Teologia da Libertação, e pela mercantilização escandalosa de certas Igrejas altissonantes. Até na ciência a pesquisa, regulada por parâmetros universais, se defronta com o charlatanismo e o esoterismo de doutrinas e práticas "alternativas".

A título de exemplo, vamos focalizar a informalidade em três setores nos quais ela é mais visível: no trabalho, na política e na literatura. Antonio Ermírio de Moraes, que cultiva preocupação sincera e salutar por tudo o que atrapalha nosso desenvolvimento econômico e social, em recente artigo manifesta seu alarme em face do que chama de nossa "lamentável informalidade" no trabalho: 40% do PIB nacional gerado por empresas não registradas; 60% dos trabalhadores sem vínculo previdenciário; empregadores que registram o empregado por salário abaixo do que recebem. A conseqüência disso todos sabem: "Uma terrível sangria na contas da Previdência Social" (Folha de S.Paulo, 27/3).

A informalidade política vem de longa data, mas atinge no governo Lula seu clímax, com o derrame crescente de medidas provisórias, a invasão indiscriminada do Legislativo pelo Executivo, em gritante desrespeito pelo princípio da separação de Poderes, sem a qual a democracia está abalada nos fundamentos. Basta lembrar aquelas palavras de Madison, em O Federalista, segundo as quais "a acumulação de todos os poderes, legislativos, executivos e judiciais, nas mesmas mãos (...) constitui a própria definição da tirania".

Que dizer também do festival de informalidade na Câmara, sob a regência de Severino Cavalcanti? O líder do baixo clero inaugurou em Brasília o "reality show" da política. Transformou a Câmara numa casa de vidro mostrando os deputados fazendo em público o que antes só praticavam na intimidade dos bastidores. No mundo da informalidade irrestrita o espaço público engole os últimos recessos da vida privada e arrebata à pessoa o direito à intimidade, sem a qual é impossível o cultivo dos sentimentos e da reflexão superior. (A propósito, um parênteses para discordar da proposta de Roberto Macedo recomendando o voto nulo e em branco como forma de protesto contra a irresponsabilidade dos maus parlamentares. Ocorre que tal forma de protesto poderá ser lida e avaliada como dirigida não aos parlamentares, e sim ao próprio Parlamento como instituição e, em última análise, contra a democracia. Não é por aí. No limite, se todos votassem em branco ou nulo, o Congresso ficaria às moscas, sem nenhum deputado ou senador para representá-lo. A universalização do voto nulo ou em branco significa nada menos que a supressão real do Parlamento.)

A formalidade em literatura chama-se estilo. Literatura sem estilo, como a de Paulo Coelho, com seu desrespeito pela dignidade da palavra, não é literatura, é literaburra. Não é que Paulo Coelho escreva mal; o que ocorre é que ele não atingiu, ainda, o nível da palavra escrita, com seu impulso criador articulado no espírito da língua portuguesa, dentro da sua lexeologia e da sua sintaxe. Simplesmente, não sabe escrever. E não sabe escrever não porque não estudasse gramática, mas porque não lê literatura, não tem convivência com os clássicos da língua. Resumindo, em Paulo Coelho, o que é bom não é dele (é sugado de outros textos) e o que é dele não é bom. Quem matou a charada, por incrível que pareça, foi aquele brasilianista americano Matthew Shirts, tão abrasileirado que adquiriu até um simpático jeito pachola. Em artigo neste jornal, escreve que o homem de 65 milhões de livros vendidos o que fez "foi derrubar o muro que separa a ficção da auto-ajuda. Eis, a meu ver, o segredo do seu sucesso." Eis aí, o "mago" de O Alquimista não se preocupa em produzir literatura, ele faz auto-ajuda. Poderia começar por auto-ajudar-se aprendendo português.