Título: A visita de Condoleezza
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/04/2005, Notas & Informações, p. A3

A visita da secretária de Estado Condoleezza Rice ao Brasil tonificou um relacionamento político bilateral que já era bom. Preparadas com grande cuidado, as conversações com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com o chanceler Celso Amorim e com o chefe da Casa Civil, José Dirceu, não incluíram temas controvertidos que poderiam tisnar a visita. E os assuntos mais delicados, que não puderam ser omitidos, foram discutidos com grande franqueza e igual civilidade. Assim, não se tratou do programa nuclear brasileiro, que a secretária de Estado, antes de embarcar rumo a Brasília, havia classificado como um exemplo de uso pacífico do átomo; a Alca retornou à agenda sem que fossem feitas cobranças, de parte a parte, pela paralisação das negociações; e o Brasil pôde recusar o pedido norte-americano de enviar um observador à reunião de cúpula entre os países sul-americanos e árabes. Mas o principal dessa visita não foi a habilidade das duas partes de evitar assuntos desagradáveis. Houve uma agenda positiva de grande significado político. Em primeiro lugar, Condoleezza Rice reconheceu que "o Brasil é uma potência regional que caminha rapidamente para se tornar uma potência mundial". Não faz tanto tempo assim que, por uma definição de política de defesa e segurança, os Estados Unidos tratavam um país com as características descritas pela secretária de Estado como um adversário, ou um inimigo, em potencial. Agora, a proeminência do Brasil não apenas é reconhecida com naturalidade como a chefe do serviço diplomático norte-americano propõe que os dois países se unam em parceria para garantir a estabilidade regional, por meio do fortalecimento da democracia no hemisfério.

Contribuiu decisivamente para o reconhecimento da liderança regional do Brasil, pelos Estados Unidos, o papel desempenhado por Brasília no encaminhamento de soluções para a crise do Haiti. Ao assumir a dianteira nas negociações que culminaram com a criação da força de paz da ONU, majoritariamente constituída por um contingente brasileiro e sob o comando de um general brasileiro, o País tornou-se politicamente credor dos Estados Unidos. O fato foi reconhecido na curta declaração conjunta assinada pelos dois ministros das Relações Exteriores, num parágrafo em que pedem aos países que prometeram doações para soerguimento financeiro do Haiti que cumpram seus compromissos.

Caberá, agora, ao governo brasileiro decidir se aceita a proposta de parceria. A viagem do chefe da Casa Civil à Venezuela, na véspera da chegada de Condoleezza Rice a Brasília, indica a propensão positiva do governo Lula. José Dirceu tentou, inutilmente, convencer o presidente Hugo Chávez a não agravar o relacionamento com os Estados Unidos, com a denúncia de um acordo de cooperação militar.

Fracassada a missão de Dirceu - fruto de um impulso irrefletido de uma diplomacia que tem chefes em excesso -, o Brasil deixou de ter condições para aceitar o convite da secretária de Estado para mediar o dissídio entre a Venezuela e os Estados Unidos. E disso se aproveitou o assessor especial para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia - que com o ingresso do chefe da Casa Civil no jogo diplomático foi rebaixado de chanceler n.º 3 a chanceler n.º 4 -, para passar o seu recado: "O governo brasileiro não está passando nem recebendo recados."

Não se trata disso. A defesa da democracia no hemisfério, se interessa aos Estados Unidos, também corresponde ao interesse nacional brasileiro. Não pode haver estabilidade política - precondição para o fortalecimento das relações comerciais - numa região abalada por constantes e graves crises institucionais. E ao Brasil a pacificação da região interessa mais do que a qualquer outro país, uma vez que a Venezuela, a Colômbia, o Peru e a Bolívia - com o Equador mais afastado - formam o arco da fronteira amazônica.

Além disso, o que Washington propõe nada mais é do que o cumprimento estrito da Carta Democrática Interamericana, da qual o Brasil é signatário. Determina a Carta, como bem lembrou a secretária de Estado Condoleezza Rice, que os líderes eleitos democraticamente devem governar democraticamente. Esse postulado, evidentemente, não é seguido pelo coronel Hugo Chávez, que tem usado as fraquezas do regime democrático para montar um regime tipicamente autoritário, que compromete as liberdades essenciais. E o governo Lula, se quiser continuar gozando do prestígio que lhe foi atribuído pela principal assessora do presidente Bush, mais cedo ou mais tarde terá de decidir se privilegia o relacionamento com pequenos sobas ou se assume o papel que compete a uma liderança emergente.