Título: Grosseria e contra-senso
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/04/2005, Notas & informações, p. A3

E ste espaço decerto seria insuficiente para reproduzir todas as batatadas proferidas pelo presidente Lula nas centenas de improvisos ao longo de seus 849 dias no Planalto. Mas, por acabrunhantes que sejam as asneiras produzidas pelo narcisístico deleite com o som da própria voz, combinado com o precário domínio da maioria dos assuntos sobre os quais argumenta com desenvolta "quase-lógica" - como já rotularam os seus claudicantes pensamentos -, até a última segunda-feira as reações ao seu discurso de cada dia não iam muito além da zombaria e da troça, ou, no máximo, da irritação apoquentada com a falta de "desconfiômetro".

Agora, foi diferente porque, além da inteligência das parcelas mais atentas da sociedade, foi atingido o amor-próprio dos brasileiros. Esse limite crucial o presidente ultrapassou ao culpar implicitamente o "comodismo" do povo pelas altas taxas de juros cobradas pelas instituições financeiras e administradoras de cartões de crédito nos empréstimos pessoais. Adicionando insulto à injúria, ou melhor, ofensa à ignorância, Lula disse que quem se queixa do custo do dinheiro "é incapaz de levantar o traseiro de uma cadeira e ir ao banco ou ao computador fazer a transferência da sua conta para um banco mais barato". Deu no que deu. Desde que assumiu a Presidência e talvez mesmo antes ele não havia recebido, de um único jorro, tantas e tão indignadas críticas.

Elas não partiram apenas das oposições, dos empresários em guerra com a política monetária e dos comentaristas atônitos com a grosseria e a ignorância daquele que sempre se pavoneou de conhecer, ao contrário dos burocratas "trancados em seus gabinetes", o áspero cotidiano da maioria dos concidadãos. Pois foram estes mesmos que reagiram com especial dureza: somente os três principais jornais do País publicaram ontem nada menos de 30 cartas de protesto - as do Estado, selecionadas entre centenas que recebemos exatamente no mesmo tom. E muitos, entre os quais eleitores confessos de Lula, voltaram contra ele, em contundentes analogias, a sua infelicíssima metáfora anatômica. Nada mais merecido.

Ninguém poderia esperar que, além do desrespeito, o alheamento de Lula o levasse a propor o equivalente ao bolo que Maria Antonieta achava que o povo faminto devia comer à falta de pão. Primeiro, os bancos não cobram juros tão díspares a ponto de compensar a correntistas que têm mais o que fazer a insana trabalheira de pesquisar o "mais barato" para então fechar uma conta e abrir outra. Segundo, não se fecham nem se abrem contas pela internet. Terceiro, boa parte dos "acomodados" nem sequer tem computador.

Já seria de pasmar se isso fosse tudo. Mas no dia seguinte Lula voltou à carga, com a proverbial emenda pior do que o soneto. Sustentou que os juros fixados pelo BC não têm impedido a expansão do consumo. Ora, se assim é, esse é o argumento irrespondível contra a alta da Selic que visa exatamente a conter o consumo para conter a alta de preços. Lula disse ainda que "o varejo está crescendo" graças ao crédito consignado, a taxas menores. Na realidade, pesquisas citadas na imprensa sugerem que os tomadores usam esse dinheiro antes para pagar dívidas mais caras do que para consumir.

Enquanto Lula dá vazão à sua incontinência verbal, o governo exibe sua preocupante inconsistência. O vice José Alencar e o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan - este, depois de afirmar que "infelizmente, o governo ainda não aprendeu a trabalhar em equipe" -, conclamaram a sociedade a "fazer pressão" e "a se levantar e tomar uma atitude" contra as taxas fixadas pelo Copom. O ministro chegou a invocar uma estrondosa derrota do seu colega da Fazenda, Antonio Palocci - a queda da MP 232, a dos impostos -, como prova de que a mobilização social funciona. Em outra frente, o assessor para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, não conseguiu disfarçar, nas suas declarações públicas a propósito da viagem de 15 horas do ministro José Dirceu a Caracas, o seu despeito pelo fato de não ter sido ele próprio o emissário escolhido por Lula para tentar arrefecer o antiamericanismo de Hugo Chávez.

Eis o melancólico retrato de uma administração cujo titular se acha no direito de passar um sabão no povo - de resto sem pé nem cabeça - como se fosse o seu preceptor, e cujos colaboradores deixam claro que, com amigos assim, o presidente não precisa de inimigos.