Título: STF vai julgar ação sobre aborto em casos de feto sem cérebro
Autor: Mariângela Gallucci
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/04/2005, Vida&, p. A17

Em uma votação disputadíssima, que durou quase cinco horas, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ontem por 7 votos a 4 julgar a ação na qual a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) pede que seja liberada em todo o território nacional a antecipação de partos de fetos com anencefalia. Apesar de não ter analisado ontem o mérito da ação, mas apenas uma questão preliminar, ficou claro que, no julgamento definitivo, previsto para o próximo semestre, a maioria dos ministros do STF votará favoravelmente ao direito de a mãe escolher se quer ou não manter a gestação de um feto com a anomalia. Para sair vitorioso no STF, tribunal integrado por 11 ministros, o autor de uma ação precisa de seis votos. Ontem, cinco ministros anteciparam suas posições favoráveis ao pedido da CNTS. A maioria deverá ser obtida pelo menos com o voto do presidente do Supremo, Nelson Jobim, que ontem restringiu suas opiniões à questão preliminar, mas recentemente declarou a jornalistas ser favorável à legalização do aborto "desde o tempo da Constituinte". Em 1988, Jobim exercia mandato de deputado federal pelo PMDB gaúcho.

Apesar desses indícios, o relator da ação no STF, ministro Marco Aurélio Mello, preferiu ser cauteloso e não quis fazer previsões sobre o julgamento do mérito. Ele explicou que deverá iniciar em breve uma série de audiências públicas no Supremo para ouvir interessados no tema: "Vamos abrir a discussão, para, com transparência, chegarmos à decisão."

Além dele e de Jobim, os ministros Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence votaram favoravelmente ao STF julgar o mérito da ação. Vencidos, os ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso eram contrários ao julgamento da ação porque entendem que ela visa a transformar o Supremo em legislador. Ou seja, segundo essa ala minoritária, o STF criaria uma terceira possibilidade não punível de aborto. Sancionado em 1940, quando não existiam exames capazes de detectar anomalias como anencefalia, o Código Penal prevê apenas duas hipóteses de o aborto não ser punido: quando a gravidez resultar de estupro e quando a gestante correr risco de morte.

No entanto, para a maioria dos ministros, o STF tem de enfrentar o tema porque envolve relevantes fundamentações constitucionais, como o direito à dignidade humana. Durante as discussões de ontem, o decano do Supremo, Sepúlveda Pertence, afirmou que o tribunal não criará uma terceira modalidade permitida de aborto. Mas, segundo ele, o que está em votação é a antecipação de parto, porque depois do nascimento já se sabe que o feto não sobreviverá.

No julgamento, o ministro Joaquim Barbosa lembrou um fato ocorrido no ano passado que chocou integrantes do STF. Quando o tribunal julgava o pedido de uma mãe que esperava um feto com anencefalia, foi informado que a criança, batizada de Maria Vida, tinha nascido e morrido sete minutos depois. Com a informação, o julgamento foi interrompido por perda de objeto. "O risco de lesão a um direito fundamental da mulher me parece evidente", afirmou Barbosa.

O ministro Carlos Ayres Britto chegou a citar no julgamento de ontem o escritor e compositor Chico Buarque para falar sobre o sofrimento das gestantes que esperam fetos com a anomalia. Ele citou trecho da canção Pedaço de Mim segundo o qual "a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu" e completou dizendo que no caso do feto com anencefalia não há quarto, nem berço, nem brinquedo.