Título: A indiscrição triunfal de Lula
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/04/2005, Economia, p. B2

Ministro brasileiro poderia cobrar um extra, talvez um salário-imagem, semelhante a um salário-insalubridade, para consertar inconveniências ditas por seu chefe. O ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, merece crédito por seu empenho em cumprir esse papel. Em menos de uma semana, ele interveio duas vezes para sustentar que o presidente não queria dizer o que todo mundo entendeu quando afirmou que havia tirado da pauta a Área de Livre Comércio das Américas, a Alca. Não convenceu nenhuma pessoa sensata, nem deve ter imaginado que pudesse convencer. Mas, além disso, não conseguiu enterrar uma questão que envolve muito mais que um tropeço verbal. A primeira intervenção do ministro foi em São Paulo, na sexta-feira passada. A segunda, na entrevista coletiva concedida em Brasília em companhia da secretária de Estado Condoleezza Rice. Nas duas ocasiões ele apresentou uma pitoresca interpretação das palavras de seu chefe. Segundo o chanceler, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva queria dizer que havia tirado a Alca da pauta dos jornalistas. Acrescentou que a Alca não é uma obsessão do governo, mas que isso não quer dizer que não seja uma prioridade. Na segunda intervenção, disse também que o tema já estava fora do debate ideológico.

Seria mais fácil enterrar o assunto se fosse possível acreditar que o presidente havia apenas cometido mais uma de suas batatadas. Muitas ainda serão perpetradas, enquanto ele insistir em falar de improviso - ou enquanto confiar em assessores de escassa competência, como aqueles envolvidos nos chamados programas sociais. Mas é bem possível que, em vez de um tropeço, o presidente Lula tenha cometido um ato falho ou uma indiscrição. Teria agido como a criança que diz na frente de visitas o que não deveria dizer e deixa os pais embaraçados. Criança causa embaraço, nessas ocasiões, quase sempre por dizer a verdade.

O histórico do governo Lula, no campo da diplomacia comercial, fortalece a hipótese do ato falho ou da indiscrição. "Faz dois anos que não se discute mais a criação da Alca no Brasil, porque tiramos a Alca da pauta", disse o presidente. A referência aos dois anos pode ser um exagero, mas indica um ponto importante. Ou o presidente estava fantasiando ou apenas confessava, com notável candor, que a decisão de não trabalhar seriamente pela Alca havia sido tomada no início de seu governo.

Em seu entusiasmo, o presidente acrescentou uma explicação: "E tiramos de que jeito? Tiramos fortalecendo o Mercosul, tiramos criando uma coisa chamada Comunidade Sul-Americana de Nações."

Todos esses detalhes, incluída a possível decisão tomada no início do mandato, são compatíveis com os fatos mais ostensivos da diplomacia comercial a partir de 2003 e com as fantasias presidenciais a respeito do Mercosul e da liderança brasileira na América do Sul.

São compatíveis com a nomeação do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, conhecido por suas opiniões contrárias à formação da Alca, para o posto de vice-ministro de Relações Exteriores. Combinam muito bem com a escolha de negociadores sabidamente receptivos à orientação do vice-ministro.

O presidente não só afirmou e explicou a mudança da pauta brasileira, mas também apresentou argumentos para justificar essa decisão. Estados Unidos e União Européia, segundo o presidente, são parceiros importantes, mas os sul-americanos não podem "ser dependentes deles".

Também esse comentário se ajusta perfeitamente às concepções estratégicas até agora reveladas pelo presidente. Ele parece nunca haver entendido que há muito tempo o Brasil é um comerciante global (global trader, em dialeto moderno), com parceiros espalhados por todos os continentes. Contatos com novos mercados vêm-se multiplicando há vários anos e o máximo que se pode dizer é que os fatos recentes sejam continuação de uma tendência - ou de uma vocação bem conhecida.

Não foi a imprensa que ideologizou o debate. Foi o governo. A bandeira da integração Sul-Sul apenas acrescentou um toque de ideologia e de ineficiência política a uma vocação que o Brasil poderia seguir sem menosprezar a formação da Alca e sem criar obstáculos a um acordo de livre comércio com a União Européia.

Depois da fala presidencial, o Itamaraty reafirmou o interesse em trabalhar pela criação da Alca. Talvez o faça, talvez não. Mas não o fez até agora e o presidente Lula, tudo o indica, apenas declarou essa verdade numa indiscrição triunfal.