Título: Carpintaria diplomática
Autor: Laura Greenhalgh
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2005, Aliás, p. J4

Salsa y merengue, diplomacia e retórica. Na semana que passou, assistiu-se a uma inusitada coreografia na América Latina. O ministro José Dirceu, na segunda-feira, fez uma viagem bate-volta a Caracas para se reunir com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Retornou 15 horas depois, já na terça, a tempo de se encontrar em Brasília com a recém-chegada chefe do Departamento de Estado dos EUA, Condoleezza Rice. Esta, por sua vez, aproveitou microfones para alfinetar o governo venezuelano. Cobrou democracia. Na sexta, em sua primeira entrevista coletiva como presidente, Lula acolchoou com panos quentes a afinidade que hoje liga Brasil e Venezuela. Mas o Palácio de Miraflores de Chávez não perdeu a chance de desacatar a Casa Branca de Bush. Na véspera, o presidente venezuelano assinou em Havana acordos bilaterais em torno da Alba - a Alternativa Bolivariana para as Américas, uma Alca do B. Chávez é uma amizade complicada para Lula? Nesta entrevista para o caderno Aliás, Marcos Azambuja, 70 anos, ex-embaixador do Brasil na Argentina (de 1992 a 1997) e na França (de 1997 a 2003), faz uma análise da diplomacia "muy amigos". De saída, separa o que chama de lado anedótico da relação Lula- Chávez para ressaltar a importância da boa vizinhança entre os dois países. E faz ressalvas: o Brasil precisaria deixar claro que não tem nada a ver com o contencioso Venezuela-EUA, deveria reaquecer seu relacionamento com a Argentina e administrar com mais cuidado suas pretensões de liderança na região. São alguns dos ensinamentos de um diplomata veterano que, hábil e sempre atento, recomenda aos vários protagonistas da atual política externa brasileira: "Em certos momentos, melhor praticar a generalidade construtiva". O que isso significa? Azambuja vai responder, acredite.

O governo brasileiro tem se ocupado da Venezuela com freqüência. Há entre os dois países uma diplomacia ao estilo "muy amigos"?

O fortalecimento da amizade com nosso vizinho no Tratado de Cooperação Amazônica é boa estratégia em qualquer momento e em qualquer governo. Ou seja, a aproximação Brasil-Venezuela não é uma idéia circunstancialmente boa. Ela é permanentemente boa. E trata-se de uma construção de longa data. Começou com o presidente Fernando Henrique, prossegue com o presidente Lula e fica agora mais estimulante com o interesse venezuelano pelo Mercosul. Outro aspecto positivo: nossas fronteiras amazônicas são bem desenhadas, mas têm funcionado mais como obstáculos do que como pontos de aproximação - diferentemente das fronteiras do sul do país, que são vivas em termos de intercâmbio de pessoas, mercadorias, transportes. Portanto, tornar mais vivas as fronteiras do norte já seria um bom motivo para a aproximação com a Venezuela.

Em março de 2005, o presidente Lula saiu em defesa de Chávez num encontro de chefes de Estado na Guiana, dizendo: "Não admitimos difamações contra companheiros". O senhor acredita que a relação Chávez-Lula é mesmo de companheirismo?

Eu me preocupo com a linguagem espontânea, pouco meditada, porque ela pode se prestar a percepções defeituosas. As duas palavras fortes da afirmação, "difamações" e "companheiros", são portadoras de carga afetiva e se sobrepõem à linguagem racional usada na discussão de interesses entre países. O Brasil, em certo momento, identificou em Hugo Chávez a defesa da democracia. Lembremos daquele golpe frustrado contra o presidente venezuelano e de como sua figura representou, ali, a defesa da legitimidade democrática. De lá para cá, no entanto, o que deve haver é um relacionamento maduro entre os dois países, no qual a afetividade não pode embaçar a lucidez dos julgamentos.

Mas, afinal, Lula e Chávez são companheiros ou não?

São bastante diferentes. O presidente Chávez é fruto de uma antiga vertente latino-americana. É o militar voluntarista, populista, herdeiro de um discurso bolivariano que remonta às lutas pela independência. É um homem de genética política diversa da do presidente do Brasil. Lula vem da vertente democrática, por isso é o homem do consenso, da conciliação. Cada um com sua biografia, portanto. E o que mais nos diz a tradição diplomática? Diz que a Venezuela tem a própria agenda política, o Brasil também, e que não devemos atrelar uma à outra para evitar situações ambíguas ou contraproducentes.

Na semana passada, o ministro José Dirceu fez uma viagem de 15 horas a Caracas e comentou-se que ele teria tentado demover o presidente Chávez de medidas contundentes, como o rompimento do acordo militar Venezuela-EUA. O ministro não confirmou essa agenda, mas os rumores existiram.

Eu tenho dúvida de que os bons conselhos do Brasil possam ser ouvidos na Venezuela, porque o estilo predominante por lá é o do voluntarismo. Volto aos ensinamentos da diplomacia. O governo brasileiro não pode perder de vista que nossa capacidade de influenciar tem limites.

Ou seja, o Brasil não deveria se antecipar como mediador dos conflitos?

Respondo com outra regra essencial da diplomacia: mediação não se oferece. Ela tem de ser solicitada. Quem oferece mediação se desqualifica como mediador. O Brasil jamais deverá agir se não for convocado pelas partes de um conflito ou de um impasse diplomático.

Movimentos como o do ministro Dirceu, numa semana em que a chefe do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, visitou o Brasil, pode significar que o governo Lula quer promover sua liderança na região?

Sou prudente em relação ao grau de ativismo brasileiro nessas situações. Aliás, uso com cautela a palavra liderança. Cada vez que um país se insinua ou se afirma líder, irrita aqueles que são ou serão liderados. A palavra liderança guarda essa armadilha. Será que a liderança é eficaz? Liderar para quem? Liderar por quê? Liderar quando? Essas perguntas precisam ser feitas com objetividade. Nosso país teve uma política externa de perfil baixo demais durante bom tempo, uma política externa aquém de nossa massa crítica. Mas hoje temo que estejamos caindo na situação oposta, num excesso de protagonismo que nos leve a situações ambíguas.

Colin Powell, à frente do Departamento de Estado americano, visitou o Brasil no final do primeiro mandato de George Bush. Condoleezza, sua sucessora, vem com poucos meses de empossada. O que isso significa?

Significa que Powell era um militar investido de função diplomática. Seus instintos eram outros. E que Rice é uma politóloga e certamente desenvolveu uma sensibilidade diplomática diferenciada. Palpite meu: ela terá uma afinidade fácil e natural com o Brasil. Mas também vale observar que a secretária visitou alguns de nossos vizinhos (Colômbia, Chile, El Salvador). Por quê? Os Estados Unidos parecem interessados em entender esse clima de inquietação na América do Sul. Embora sem riscos para a democracia, tem havido movimentos populares significativos na região - Peru, Bolívia, Colômbia, Equador e a própria Venezuela. Começa a se firmar a idéia de que a América do Sul vive uma ressaca democrática, protagonizada não por militares, mas pelo povo. Hoje é a população que se subleva. Nesse cenário, a chefe do Departamento de Estado vem aqui quase para nos dizer "não deixem a peteca cair", porque se acredita no poder moderador do Brasil. Rice passou essa mensagem entre as várias obviedades que disse nesta semana.

Lula e Bush têm sinalizado entendimento e até certa simpatia. Porém, Chávez é claro no confronto com o governo norte-americano. Ficar entre Bush e Chávez é uma situação desconfortável para o presidente brasileiro?

O Brasil não tem essencialmente nada a ver com as divergências entre Venezuela e Estados Unidos. E deve deixar isso claro. No máximo deverá sempre expressar seus desejos de bom entendimento entre as duas nações amigas, para que o espírito de paz e harmonia prevaleça nas Américas. Numa situação assim, melhor praticar a generalidade construtiva.

O que vem a ser generalidade construtiva, embaixador?

Generalidade construtiva é algo muito importante, viu? Quando um casal vive uma crise, quem é amigo e assiste aos desentendimentos pode no máximo desejar que a harmonia volte a reinar e os problemas sejam logo superados. Política externa não é muito diferente da política entre pessoas.

Chávez tem feito compras de armas e equipamentos militares em diferentes países, como Espanha, Rússia e até mesmo Brasil, no caso dos aviões da Embraer. E faz sob um festival de críticas dos Estados Unidos. A situação está ficando tensa?

Tensão não é o termo adequado. Não há uma corrida armamentista na América do Sul. Essa corrida se dá quando a compra feita por um país desequilibra a relação de poder com os vizinhos. Até o momento, a Venezuela tem todo o direito de ter uma política de compras para equipamentos militares, desde que as aquisições não impliquem uma situação incômoda na região.

O senhor falou no risco de um protagonismo diplomático excessivo do Brasil. O problema não seria um excesso de protagonistas?

Numa diplomacia presidencial, como a nossa, o chefe do Executivo pode escolher enviados para missões especiais. Nos Estados Unidos, o presidente conta com emissários temáticos e muitas vezes prefere sair dos canais oficiais para trabalhar com canais paralelos. É sempre uma boa medida quando se quer operar uma situação complexa, com possibilidade de recuo. Enfim, há flexibilidade na escolha dos emissários diplomáticos, e o presidente Lula pode perfeitamente escalar um ministro como José Dirceu ou um assessor como Marco Aurélio Garcia, espécie de national security advisor da Presidência. Por outro lado, existe na diplomacia moderna uma preocupação com a transparência dos canais para que não haja sobreposição de tarefas. E também se evita o congestionamento dos canais diplomáticos pelo excesso de atores envolvidos. Minha convicção é simples: diplomacia se faz com canais diplomáticos. Em geral eles dão conta do recado.

A política externa brasileira tem dado ênfase ao relacionamento Sul-Sul, ainda que isso gere divergências dentro do governo. Esse é o caminho?

Com exceção da América do Sul, que é nossa preferência natural e nosso entorno, todas as outras escolhas do Brasil são arbitrárias. Não se pode pretender que afinidades históricas e culturais necessariamente correspondam aos interesses econômicos e de desenvolvimento do País. Dou exemplos: o Brasil tem uma política de exportação de estudantes para cursos de pós-graduação e doutoramentos. Pois bem, o número de estudantes que vão para escolas africanas ou sul-americanas é insignificante porque nossas prioridades acadêmicas são outras. Temos uma imensa necessidade de atrair ciência e tecnologia. Pois capturamos muito pouco nesse setor na América do Sul e na África. O Brasil tem uma política de incentivo para a exportação de bens de alto conteúdo tecnológico. Mas o que a Embraer vende para a África ou mesmo para a América do Sul é irrisório. Hoje nossos interesses moram em outras partes do mundo. Como na Rússia, na Índia, na China, na América do Norte, nos países do G-20. O Brasil tem de se assumir como um global player e deixar de ser tão seletivo.

Parece que o Brasil aquece relações com a Venezuela, ao mesmo tempo em que esfria com a Argentina. E a retirada da candidatura brasileira à Organização Mundial de Comércio (OMC) prova que o país não tem contado com apoios que foram seus no passado. O senhor concorda?

O Mercosul continua a ser o principal objetivo do Brasil na política hemisférica. Se você colocar pratos sobre a mesa, o que existe para ser servido é só o Mercosul. Outros pratos, como a Alca e a União Européia, continuam no livro de receitas. Precisamos trabalhar duro pelo Mercosul e ver até que ponto vai a relutância brasileira em aceitar regras do jogo. Quanto ao relacionamento com a Argentina, sim, ele precisa de reaquecimento. Nota-se por lá a mágoa de que o Brasil não foi solidário quando da renegociação da dívida argentina. Esforços diplomáticos não devem ser poupados para recompor o relacionamento de confiança entre os presidentes Kirchner e Lula. Na América do Sul, relações interpessoais são decisivas, e isso vale para chefes de Estado também. Quanto à Alca, me parece que a idéia se converteu num grande fantasma.

Por quê?

Criou-se uma idéia meio "principista" de que a Alca é um projeto demoníaco, que enfraquecerá a economia brasileira. Não há caso na história de um projeto de livre-comércio que tenha passado por um plebiscito antes de existir formalmente. O debate emocional em torno da Alca não ajuda em nada.

E o que o senhor diz da retirada da candidatura brasileira à presidência da OMC?

Sou grande admirador do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, candidato brasileiro à presidência da OMC, mas não me pareceu correto que o Brasil tenha se colocado numa disputa para perder no primeiro round. A derrota faz parte da vida. Mas, no primeiro round, não é prestigioso. Houve um erro de avaliação quando se considerou a candidatura uruguaia descartável. E não foi, o que complicou o jogo. Cálculos diplomáticos precisam ser feitos com muito, muito critério. Agora começo a me preocupar com essa cúpula árabe-sul-americana, anunciada para breve. Será que entendemos tanto de mundo árabe? Mais uma vez, o samba poderá atravessar.