Título: A incontinência verbal tem o seu valor
Autor: Renato Lessa
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2005, Aliás, p. J5

Franz Neumann em seminal interpretação do nazismo, desenvolvida em seu clássico livro Behemot, afirmou que os regimes políticos em geral podem ser pensados como expressões de filosofias políticas específicas. Para além da interpretação peculiar do nazismo, a proposição básica de Neumann reside na associação entre forma política e alguma fundamentação doutrinária. Com efeito, muito teríamos a ganhar se fôssemos capazes de superar as ásperas e tediosas análises institucionalistas e nos ocupássemos das alucinações e crenças que estão na origem de todos os artefatos humanos. Mas, se a suposição de Franz Neumann procede, como poderíamos detectar o nexo entre a forma política e a sua, digamos, metafísica? Ou, em outras palavras, em que lugar preciso ocorre o vínculo entre a forma política e a crença básica da qual resulta? Duas proposições estabelecidas pelo filósofo escocês David Hume, no tristemente longínquo século 18, podem ajudar-nos na busca de respostas. A primeira delas assevera que só podemos falar da natureza humana de uma perspectiva experimental; a segunda sustenta que não temos acesso a substâncias, mas apenas a modos particulares. Penso poder socorrer o leitor desse excesso de jargão filosófico ao propor a seguinte tradução vernacular: devemos organizar nossas percepções sobre o mundo e sobre o comportamento dos humanos a partir do que vemos; nosso acesso às crenças e doutrinas que configuram o mundo só pode se dar se observarmos as ações de seus portadores.

Se é verdade, portanto, que crenças, alucinações e doutrinas estão na base das formas políticas, é na observação do que fazem e dizem seus protagonistas que tal relação poderá fazer sentido. Quer isso dizer que, a despeito da pauta preparada por marqueteiros, há algo de autêntico no que dizem, por exemplo, os presidentes brasileiros. Graças a seus excessos e destemperos opiniáticos, algo se revela, e, temo dizer, todos ganhamos um pouco com isso. A nitidez dos valores que governam a República depende, portanto, de uma certa falta de controle. O juízo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre os aposentados do serviço público, por exemplo, dificilmente teria decorrido de alguma prescrição de magos da opinião pública. Por um lampejo, o excesso e o destempero aparecem como condições da verdade: são as crenças básicas que emergem e tornam inteligível o desenho da política proposta ao país.

A redução botequinesca proposta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva revela-nos como um povo amável e ingênuo, uma legião de boas-praças, movidos a cerveja, conversa fiada e tira-gostos. A circunstância carioca na qual estou indelevelmente inscrito inclina-me, admito, a reconhecer-me na imagem. Porém o que dela resulta é o juízo de que a cordialidade e a farra são inimigas do interesse público, pois, por comodismo, não exigimos o que nos é de direito, e que, a despeito do estrago feito pelas atas do Copom, as mazelas da República possuem nossas impressões digitais.

São teorias e interpretações a respeito do Brasil, de sua história e dos humanos que por aqui habitam que emergem das falas presidenciais. Proponho que as levemos a sério e não nos deixemos conduzir pela tola suposição de que os excessos verbais são modos de um despreparo e se limitam a momentos retóricos evitáveis e supérfluos.Vale aqui a máxima de Oscar Wilde: só pessoas muito superficiais não se deixam levar pelas primeiras impressões.

O longo consulado tucano, por exemplo, foi pródigo na exibição da própria metafísica. Uma elite ilustrada, por fim, ocupa-se da direção da República e faz da auto atribuída superioridade intelectual sua marca distintiva. Uma das imagens fortes produzidas pelo ex-presidente Fernando Henrique, por exemplo, referia-se à oposição como um conjunto de pessoas que não sabiam o que "o Brasil quer". Tivemos, com a ilustração tucana, uma recusa militante do brasileiro ordinário, lapidado por décadas de instintos e desejos escusos que o fizeram incapaz de perceber o que significa o interesse público: paixões baixas e nutridas pela ecologia política e moral do getulismo, marca de uma era a ser apagada da vida nacional. As ficções presidenciais apegavam-se a uma perspectiva de correção do país, vale dizer, dos hábitos de seus habitantes e das estultices acumuladas pela sua história.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece mover-se em cenário distinto. O belo filme de João Moreira Salles, a propósito, revela o personagem como uma espécie de síntese dos brasileiros comuns. E mais, a marcha para o poder pode ser narrada como uma aventura com enredo biográfico. A novidade desse enredo, de imediato, introduz uma nítida concepção a respeito da história e do tempo brasileiros. De algo em si mesmo tão novo só podem resultar conseqüências inovadoras. É como se o Brasil só agora tivesse inaugurado sua história real. Uma história cuja pré-história é tão somente algo útil para tornar nítido o contraste. Esse parece ser o sentido do mantra "nunca antes no Brasil...".

Essa noção de tempo inaugural tem inequívoca marca da mitologia histórica petista: afinal, tudo começou nos idos de 70, no ABC paulista; uma nova história, precedida apenas pelo seu contraste. Petistas e tucanos habitam uma mesma concepção a respeito do tempo e da história do Brasil. O passado não constitui tradição, mas sim estorvo. A política só faz sentido se fundada na mitologia do recomeço. Daí a gravidade dos semblantes tucanos e sua bizarria facial quando obrigados a sorrir para fins eleitorais.

Com o petismo a alquimia parece ser mais complexa. Uma certa bravataria a respeito do recomeço do Brasil combina-se com a promoção do brasileiro ordinário, que deve ter orgulho de si mesmo. Um presidente que em seus improvisos mobiliza imagens e metáforas da conversa ordinária dos brasileiros opera como um ícone, a dizer que, afinal, "estamos no poder". Uma forma peculiar de aí estar: mais pelos modos de comportamento do que pela forma e pelos efeitos substantivos das decisões.

A promoção da imagem dos brasileiros, como um povo bom, animado, multicolorido, sugere que nos livremos do rodriguiano complexo de vira-lata: vírus que teria se infiltrado em nosso caráter nacional como decorrência da nossa derrota para a Hungria na Copa de 1954.

O presidente é um ator fundamental na fixação dessas imagens. Nessa atividade combinam-se o artificialismo dos magos da opinião com a espontaneidade e o destempero dos improvisos. Por mais desastrosos que sejam, causam menos danos à vida pública, posto que exibem crenças reais. O destempero dos governantes é o ato falho da linguagem pública.

Penso que teríamos uma idéia mais interessante a respeito do presidencialismo se levássemos a sério a dimensão performática dos presidentes. Mais do que buscar definições cifradas a respeito da natureza institucional do presidencialismo brasileiro, creio ser importante sugerir como hipótese que os presidentes entre nós têm sido operadores de uma espécie de animação do público. Governos em geral são engrenagens ásperas e impermeáveis: exigem atas do Copom, marcos regulatórios, semblantes sombrios e ânimo bolchevique. Nas repúblicas realmente existentes alguma empatia com os cidadãos deve a isso ser acrescentada. É indispensável, pois, animar as repúblicas.