Título: Xenofobia: brasileiros sob ameaça
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2005, Metrópole, p. C1

BOSTON - Ildeane e Silvana não sabem dirigir. E sabem que sem essa ferramenta não conseguirão ser faxineiras nem entregadoras de jornais, tipos de emprego para os quais sempre há vagas. Logo que chegaram a Salem, foram agenciadas por uma brasileira que se prontificou a levá-las e buscá-las nos casarões que deveriam limpar. Em dupla - faxineiros brasileiros sempre trabalham em dupla - receberam a tarefa de arrumar 11 casarões da região. Onze. Num mesmo dia. Faxinaram das 7 às 22 horas por US$ 60,00. "Como é que eu vou reclamar se meu marido ganhava a mesma coisa, só que por um mês inteiro, quando a gente vivia em Guanhães?", pergunta Silvana, que morava numa rua sem calçada, numa casa sem reboco.

Mas foi uma exceção. Por não terem carro, a oferta de emprego secou. Sabem que precisam aprender a dirigir para não ter abortado o sonho americano. Mesmo quando aprenderem, circularão sem carteira de motorista, ou com uma falsa, aumentando a legião de migrantes não documentados que dirigem com o coração na mão. "Só de sentar no volante a gente já passa mal", diz Ildeane.

Na quinta-feira, Ilma, Ildeane e Silvana passavam os olhos nas manchetes do Jornal @ Notícia, de circulação gratuita entre os brasileiros de Massachusetts. "Carro de brasileira é apedrejado em Framingham", "Comunidade combate sentimento antiimigrante", "Superlotação faz Imigração soltar 232 brasileiros presos no Texas", "A América da TV e a da Vida Real", "O Imigrante Brasileiro Atravessa o seu Momento mais delicado nos EUA".

Mesmo sem conhecer a saga das 19 mulheres de Salem acusadas de feitiçaria e enforcadas em 1692, as mineiras tinham calafrios com o caso da líder comunitária que teve o Cherokee apedrejado no quintal de casa.

A ativista, Ilma Paixão, presidente da Brazilian American Association (Bramas), atua em Framingham, município de maior concentração de brasileiros nos Estados Unidos. Framingham, pertinho de Boston, também é a cidade da costa leste em que o grupo de vigilantes CCFIIle, de forte coloração xenófoba, atua com mais violência. A sigla, em inglês, significa Cidadãos e Amigos Dedicados à Defesa das Leis contra a Imigração Ilegal.

Havia meses a brasileira vinha recebendo ameaças, sendo seguida, fotografada e filmada. Apresentou queixa à polícia, denunciou a situação ao secretário especial Jacques Wagner e comunicou o fato ao consulado do Brasil. Sempre sustentou que o imigrante, documentado ou não, não deve se curvar a abusos ou ameaças.

"Não sei se algum outro brasileiro foi agredido, porque muitos temem represália. Mas o correto é denunciar à polícia qualquer ato covarde e de violência", declarou, após o apedrejamento de seu carro na semana passada. Considerando-se que o grupo xenófobo de Framingham é ligado ao movimento de vigilantes que há um mês vasculha a fronteira com o México à caça de imigrantes, o risco de fervura desse extremismo passou a ser menos abstrato.

Fim de tarde em Salem. O proprietário da casa que abriga as três mineiras e outros cinco brasileiros no segundo andar não mora mais ali. Desocupou o porão, que alugava para outros imigrantes, depois de ter sido denunciado por vizinhos - o número de residentes excedeu o permitido. Ilma, Ildeane e Silvana recebem a visita de Val, que chega a bordo de um flamejante jipão Chrysler. Val pode se orgulhar de ter feito a América: chegou com o marido há seis anos, iniciando a vida de imigrante fazendo faxina, como tantos. Hoje é empresária. E comemora a compra da primeira casa própria em território americano: uma mansão antiga na costa de Massachusetts, coisa de US$ 500 mil, financiada em 30 anos.

Apesar de bem-sucedida e plenamente integrada ao país de adoção - sempre teve todos os papéis em ordem -, Val acaba de fazer um seguro de vida para a eventualidade de ela ou o marido virem a morrer em terra estrangeira. "Volta e meia tem o caso de alguém que morre por aqui, mas não deixa dinheiro para o corpo ser levado até o Brasil. O traslado custa entre US$ 8 mil e US$ 20 mil, então começa uma vaquinha entre brasileiros para pagar a conta. Não quero que isso aconteça conosco", explica. Ser enterrada nos Estados Unidos? Nem pensar.

Ilma, Ildeane e Silvana escutam. Nenhuma cogita viver, muito menos morrer, nos Estados Unidos. Querem apenas trabalhar. "Vim com o objetivo de ajudar meu marido até a gente poder comprar uma casa no Brasil", diz Silvana. Coisa de dois, três anos no máximo. O atravessador lhe ofereceu trazer o filho único de 4 anos por "apenas US$ 3 mil a mais", abatimento considerável sobre os habituais US$ 10 mil por cabeça. Declinou categoricamente. "Lá em Guanhães eu sei que pelo menos ele está comendo, bebendo e dormindo em família. Como é que eu iria cuidar dele nesta terra?"

Ilma, que também deixou dois filhos pequenos com os avós, concorda. "Tem gente que usa bebês só para passar direto na Imigração", comenta, indignada, referindo-se à norma americana de não deter mães com filhos pequenos que caem na malha fina - as autoridades retêm os passaportes, emitem a convocação com data de apresentação na Justiça e liberam a família que entrou ilegalmente.

Para quem nunca tinha saído da terrinha mineira, nem andado de avião, nem assistido a um filme em sala de cinema - não existem cinemas em Guanhães - o salto para a América desse Brasil migrante só não é maior do que a aventura de recomeçar uma vida em bases tão movediças. "Tem dia que eu deito na cama e penso, 'É agora que eu vou morrer', mas a vida é muito maior do que os medos da gente", constata Ilma.