Título: Outra visão da Alca
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2005, Editoriais, p. A3

Dias depois de ter o presidente Lula se vangloriado de que "faz dois anos que não se discute mais a criação da Alca no Brasil porque tiramos a Alca da pauta", o ministro de Relações Exteriores tentou tapar o sol com peneira. Disingenuously - o advérbio com que os ingleses se referem às manifestações que não primam nem pelo engenho dos seus autores, muito menos pela sua intenção de dizer a verdade aos interlocutores -, o chanceler quis fazer crer, contra todas as evidências, que a "pauta" da qual a Alca teria sido tirada pelo governo, segundo Lula, era a da imprensa. Agora, acaba de vir a público se não uma versão muito mais crível da realidade - ao menos um retrato das expectativas daqueles que não compartilham da aversão ideológica da cúpula do Itamaraty à introdução do livre comércio em todo o Continente. De passagem por São Paulo, onde participou de um evento promovido pela Câmara Americana de Comércio, o embaixador do Brasil em Washington, Roberto Abdenur, afirmou que o País não deu as costas à Alca - a conclusão inexorável que qualquer um tiraria das palavras do presidente, mesmo que desconhecesse a encarniçada resistência à iniciativa por parte dos nostálgicos da diplomacia do "pragmatismo responsável" do general Ernesto Geisel.

"As negociações nunca foram propriamente interrompidas", assegurou Abdenur. "Elas foram momentaneamente suspensas por força de circunstâncias imperiosas." Exemplos de tais circunstâncias seriam, de acordo com o diplomata, as discussões da Rodada Doha na Organização Mundial do Comércio (OMC), as incertezas sobre o resultado das eleições presidenciais americanas de novembro passado e, depois, sobre a composição do segundo governo Bush.

Talvez para não parecer disingenuous, Abdenur citou um dado objetivo em apoio aos seus dizeres: "há algumas semanas" - antes, portanto, da afirmação de Lula sobre a retirada da Alca da agenda -, os co-presidentes da Alca, o brasileiro Adhemar Bahadian e o americano Peter Allgeier, voltaram a tratar do assunto. E ressaltou, sem entrar em detalhes: "Eles fizeram progressos não desprovidos de importância."

Isto posto, o embaixador deu o seu recado com endereço certo, como se diz. A pretexto das conseqüências positivas para o relacionamento entre o Brasil e os Estados Unidos, que entende serem líquidas e certas, da visita da secretária de Estado Condoleezza Rice a Brasília, ele abriu o fogo amigo: "Eu não gosto de usar chavões em política externa. Ao longo de 40 anos, aprendi que, por vezes, usar certos rótulos é indevido, pois cria expectativas excessivas que depois não se materializam."

Difícil não enxergar nessas palavras uma das críticas mais contundentes - e, de resto, mais autorizadas -, seja aos freqüentes transbordamentos verbais do presidente Lula sobre a cornucópia de benefícios que advirão para o Brasil da chamada "diplomacia Sul-Sul", seja, correlatamente, àquilo que a bancada terceiro-mundista do Itamaraty sustenta que deva ser a tônica da política brasileira de comércio exterior.

A propósito, na entrevista coletiva da sexta-feira, Lula reclamou dos críticos de suas visitas às paragens onde a retórica é torrencial e de onde o retorno econômico pode ser medido por um conta-gotas. Disse o presidente que o comércio com a África aumentou 45%; com os vizinhos latino-americanos, 58%; e com o mundo árabe, 50%. Dado o formato da entrevista, que não permitia a um mesmo jornalista uma segunda pergunta com base na resposta à primeira, perdeu-se a oportunidade de avaliar em perspectiva essas taxas à primeira vista altissonantes.

Bastaria pedir ao presidente que mencionasse os patamares de que partiu, em cada caso. Se ele o fizesse, se perceberia de imediato que as aparências enganam. Convertidas em valores absolutos, as citadas evoluções porcentuais - aliás, em um ano em que as vendas externas brasileiras quebraram recordes sobre recordes - foram quantitativamente insignificantes.

Numa prova do cuidado com que se devem manusear números, o embaixador Abdenur - um aguerrido defensor da expansão do comércio bilateral com os Estados Unidos - observou que as vendas brasileiras para os EUA cresceram cerca de 18% de 2003 para 2004. Mas a parte brasileira nas compras americanas é de 1,4%, a mesma taxa de há 10 anos, sendo que em meados dos anos 80 chegou a 2,2%. "Não podemos", advertiu, "continuar nesses níveis."