Título: O reencontro com o vício do autoritarismo
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2005, Nacional, p. A11

O stalinismo chegou ao Brasil antes de Stalin assumir o poder na União Soviética e iniciar o maior genocídio da História. Entre nós, a primeira vítima dos expurgos comunistas foi Antônio Bernardo Canellas, um niteroiense libertário que em 1922 foi indicado pelo recém-fundado Partido Comunista do Brasil para representá-lo no 4.º Congresso da Internacional Comunista, em Moscou. A comovente história de Canellas é contada no livro Um Cadáver ao Sol, que, segundo a autora, a jornalista Iza Salles, estimula reflexões sobre o autoritarismo marxista e sobre o Brasil atual. O livro de Iza escancara a vocação sempre autoritária do marxismo, ao relatar em minúcias o processo kafkiano instaurado contra Canellas por ordem direta de Moscou. De acordo com ela, o vício autoritário que surpreendeu Canellas na Internacional Comunista tem muitas semelhanças com o Brasil atual e com as tentativas de estabelecer controles sobre a sociedade. O processo que marcou a expulsão e a desqualificação pública de Canellas guarda muitas semelhanças com a expulsão de militantes radicais que discordaram do PT.

Iza, que foi presa política na ditadura militar, também lembra que o regime soviético liquidou os anarquistas na União Soviética e obrigava os PCs de todo o mundo a combater os seus adversários históricos - os anarquistas e os social-democratas. "Mas quando o PC italiano chegou ao poder fez um governo social-democrata", assinala a autora, "da mesma forma que o PT, que pregava soluções radicais até atingir o poder. Agora adota políticas liberais e processa e expulsa os radicais que tinha incorporado na sua fundação".

Um Cadáver ao Sol é um livro para provocar polêmicas na esquerda brasileira. Primeiro, porque propõe uma reflexão profunda sobre a essência autoritária do marxismo. Segundo, porque narra a história de um homem que soube dizer "não", lutando contra dirigentes que tinham por vício dizer "sim". Terceiro porque demonstra que os processos de expulsão nos partidos comunistas não se circunscreviam ao debate ideológico, mas promoviam a desconstrução moral do militante a ser defenestrado - e muitas vezes terminavam em assassinatos.

Canellas era um comunista recém-egresso do anarquismo e chegou a Moscou, em 1922, acreditando que a Revolução de Outubro era generosa e democrática. No congresso da Internacional Comunista, com apenas 24 anos, ele refutou dogmas, votou contra resoluções programadas para receber aprovação unânime e aparteou o camarada Trotski para acusá-lo de fazer uma bourrage de crâne (lavagem cerebral) com os delegados. A perseguição contra ele começou ainda em Moscou; quando voltou ao Brasil foi acusado, desmoralizado e, afinal, expulso do PCB como "traidor".

Já aos 17 anos, Canellas era um militante em tempo integral e viajava pelo Brasil para fundar jornais operários que pregavam a organização dos trabalhadores, no melhor estilo anarcossindicalista. Ele era filho legítimo da onda anarquista trazida pelos 3,4 milhões de imigrantes europeus que entraram no Brasil entre 1871 e 1920. Anarquistas e marxistas se batiam desde meados do século 19, mas a revolução russa entusiasmou os anarquistas brasileiros. Era emotivo: narrou compungido que os 394 delegados do 4.º Congresso se levantaram e cantaram a Internacional (o hino comunista) quando Lenin entrou.

Muitos anarquistas confundiram os rumos e aderiram ao comunismo. Na Rússia soviética as desconfianças surgiram com a repressão contra anarquistas e social-democratas, mas essas informações não chegavam ao Brasil. Logo após Canellas chegar de volta ao Brasil, chegaram também os relatórios de Moscou, falando de sua indisciplina. Questionado duramente pelo partido, ele acabou expulso, desmoralizado com dezenas de pejorativos - pedante, asno, ignorante, parlapatão, ególatra, neurótico, pessoinha, ictérico, pernóstico e, por último, desertor e traidor.

"Canellas não traiu ninguém. Foi expulso porque queria discutir as idéias, e não aceitá-las prontas, como fizeram os comunistas a vida inteira", defende Iza. O livro acompanha as trajetórias dos que puniram Canellas e mostra que todos, sem exceção, em algum momento da ditadura stalinista caíram em desgraça e sofreram punições bem mais graves e dolorosas que o libertário niteroiense dos jornais operários.